CARTA ENCÍCLICA
DIVINIS REDEMPTORIS
DE SUA SANTIDADE
PAPA PIO XI
AOS VENERÁVEIS IRMÃOS,
PATRIARCAS, PRIMAZES, ARCEBISPOS,
BISPOS E DEMAIS ORDINÁRIOS
EM PAZ E COMUNHÃO COM A SÉ APOSTÓLICA
SOBRE O COMUNISMO ATEU
INTRODUÇÃO
I - ATITUDE DA IGREJA PERANTE O COMUNISMO
II - DOUTRINA E FRUTOS DO COMUNISMO
III - LUMINOSA DOUTRINA DA IGREJA, OPOSTA AO COMUNISMO
IV - REMÉDIOS E MEIOS
V - MINISTROS E AUXILIARES DESTA OBRA SOCIAL DA IGREJA
CONCLUSÃO
1. A promessa dum Redentor divino ilumina a primeira página da
história da humanidade; e assim a firmíssima esperança de melhores dias,
assim como suavizou a dor causada pela perda do
paraíso de delícias, assim foi acompanhando os homens através do seu caminho de amarguras e inquietações, até que enfim, q
uando chegou a plenitude do tempo,
o nosso Salvador, vindo à terra, cumulou as ânsias dessa tão longa
expectação da humanidade e inaugurou para todos os povos uma nova
civilização cristã, que vence e quase imensamente supera a que algumas
nações mais privilegiadas atingiram, à custa dos maiores esforços e
trabalhos.
2. Depois da miserável queda de Adão, como conseqüência dessa mácula
hereditária, começou a travar-se o duro combate da virtude contra os
estímulos dos vícios; e jamais cessou aquele antigo e astuto tentador de
enganar a sociedade com promessas falazes. É por isso que, pelos
séculos afora, as perturbações se têm sucedido umas às outras até à
revolução dos nossos dias, a qual ou já surge furiosa ou pavorosamente
ameaçada atear-se em todo o universo e parece ultrapassar em violência e
amplitude todas as perseguições que a Igreja tem padecido; a tal ponto
que povos inteiros correm perigo de recair em barbárie, muito mais
horrorosa do que aquela em que jazia a maior parte do mundo antes da
vinda do divino Redentor.
3. Vós, sem dúvida, Veneráveis Irmãos, já percebestes de que perigo ameaçador falamos: é do
comunismo, denominado bolchevista
e ateu, que se propõe como fim peculiar revolucionar radicalmente a
ordem social e subverter os próprios fundamentos da civilização cristã.
CONDENAÇÕES ANTERIORES
4. Mas diante destas
ameaçadoras tentativas, não podia calar-se nem de fato se calou a Igreja
Católica. Não se calou esta Sé Apostólica, que muito bem conhece que
tem por missão peculiar defender a verdade, a justiça e todos os bens
imortais, que o comunismo despreza e impugna. Já desde os tempos em que
certas classes de eruditos pretenderam libertar a civilização e cultura
humanística dos laços da religião e da moral, os Nossos Predecessores
julgaram que era seu dever chamar a atenção do mundo, em termos bem
explícitos, para as conseqüências da descristianização da sociedade
humana. E pelo que diz respeito aos erros dos comunistas, já em 1846, o
Nosso Predecessor de feliz memória, Pio IX, os condenou solenemente, e
confirmou depois essa condenação no Sílabo. São estas as palavras que
emprega na Encíclica Qui pluribus: “Para aqui (tende) essa
doutrina nefanda do chamado comunismo, sumamente contrária ao próprio
direito natural, a qual, uma vez admitida, levaria à subversão radical
dos direitos, das coisas, das propriedades de todos e da própria
sociedade humana” (Encíclica Qui pluribus, 9 de novembro de
1846: Acta Pii IX, vol. I, pág. 13. Cf. Sílabo, IV: A.A.S., vol. III,
pág. 170). Mais tarde, outro Predecessor Nosso de imortal memória, Leão
XIII, na sua Encíclica Quod Apostolici muneris (28 de dezembro de 1878: Acta Leonis XIII, vol. I, pág. 40), assim descreveu distinta e expressamente esses mesmos erros: “Peste mortífera, que invade a medula da sociedade humana e a conduz a um perigo extremo”;
e com a clarividência do seu espírito luminoso demonstrou que o
movimento precipitado das multidões para a impiedade do ateísmo, numa
época em que tanto se exaltavam os progressos da técnica, tivera origem
nos desvarios duma filosofia que de há muito porfia por separar a
ciência e a vida da fé da Igreja.
ATOS DO PRESENTE PONTIFICADO
5. Nós também no decurso do
Nosso Pontificado, com insistente solicitude fomos várias vezes
denunciando as correntes desta impiedade que víamos crescendo e rugindo
cada vez mais ameaçadoras. Efetivamente, quando em 1924 voltava da
Rússia a Nossa missão de socorro, numa alocução especial dirigida ao
universo católico (18 de dezembro de 1924: A.A.S., vol. XVI (1924),
págs. 494-495), condenamos os erros e processos dos comunistas. E pelas Encíclicas Miserentissimus Redemptor (8 de maio de 1928: A.A.S., vol. XX (1928), págs. 165-178), Quadragesimo anno (15 de maio de 1931: A.A.S., vol. XXIII (1931), págs. 177-228), Caritate Christi (3 de maio de 1932: A.A.S., vol. XXIV (1932), págs. 177-194), Acerba animi (29 de setembro de 1932: A.A.S., vol. XXIV (1932), págs. 321-332), Dilectissima Nobis
(3 de junho de 1933: A.A.S., vol. XXV (1933), págs. 261-274),
levantamos a voz em solenes protestos contra as perseguições
desencadeadas contra o nome cristão, tanto na Rússia, como no México,
como finalmente na Espanha. E estão ainda bem frescas na memória as
alocuções por Nós pronunciadas, o ano passado, quer por ocasião da
inauguração da Exposição mundial da Imprensa Católica, quer na audiência
concedida aos refugiados espanhóis, quer também em Nossa Mensagem
radiofônica pela festa do santo Natal. Até os mais encarniçados inimigos
da Igreja, que desde Moscou, sua capital, dirigem esta luta contra a
civilização cristã, até eles mesmos, com seus ataques ininterruptos, dão
testemunho, não tanto por palavras como por atos, que o Sumo
Pontificado, ainda em nossos tempos, não só não cessou de tutelar com
toda a fidelidade o santuário da religião cristã, mas tem dado voz de
alarme contra o enorme perigo comunista, com mais freqüência e maior
força persuasiva que nenhum outro poder público deste mundo.
NECESSIDADE DE UM NOVO DOCUMENTO SOLENE
6. Não obstante, posto que
temos renovado tão repetidamente estas paternais advertências, que vós,
Veneráveis Irmãos, em tantas cartas pastorais, algumas delas coletivas,
diligentemente comentastes e transmitistes aos fiéis, ainda assim este
perigo, com o impulso de hábeis agitadores, mais e mais se vai agravando
de dia para dia. É por isso que julgamos dever Nosso levantar de novo a
voz; e fá-lo-emos por meio deste documento de maior solenidade, como é
costume desta Sé Apostólica, mestra da verdade; e com tanto maior
satisfação o faremos, quando é certo que assim correspondemos aos
desejos de todo o universo católico. Confiamos até que o eco da nossa
voz será acolhido de bom grado por todos aqueles que, de espírito
liberto de preconceitos, desejem sinceramente o bem da humanidade. Esta
nossa confiança vem em certo modo aumentá-la o fato de vermos estas
Nossas admoestações confirmadas pelos péssimos frutos, que Nós
prevíramos e anunciáramos haviam de brotar das idéias subversivas, e que
de fato se vão pavorosamente multiplicando nas regiões já dominadas
pelo comunismo, ou ameaçam invadir rapidamente os outros países do
mundo.
7. Queremos, pois, mais uma vez expor, como em breve
síntese, os sofismas teóricos e práticos do comunismo, como eles se
manifestam principalmente nos princípios e métodos da ação do
bolchevismo: a esses sofismas, todos falsidade e ilusão, contrapor a
luminosa doutrina da Igreja; e de novo exortar a todos insistentemente a
lançar mãos dos meios, com que é possível não somente livrar e
salvaguardar deste horrendo flagelo a civilização cristã, a única em que
pode subsistir uma sociedade verdadeiramente humana, mas ainda fazê-la
avançar, a passo cada dia mais acelerado, para o genuíno progresso da
humanidade.
DOUTRINA
Falso ideal
8. A doutrina comunista
que em nossos dias se apregoa, de modo muito mais acentuado que outros
sistemas semelhantes do passado, apresenta-se sob a máscara de redenção
dos humildes. E um pseudo-ideal de justiça, de igualdade e de
fraternidade universal no trabalho de tal modo impregna toda a sua
doutrina e toda a sua atividade dum misticismo hipócrita, que as
multidões seduzidas por promessas falazes e como que estimuladas por um
contágio violentíssimo lhes comunica um ardor e entusiasmo irreprimível,
o que é muito mais fácil em nossos dias, em que a pouco eqüitativa
repartição dos bens deste mundo dá como conseqüência a miséria anormal
de muitos. Proclamam com orgulho e exaltam até esse pseudo-ideal, como
se dele se tivesse originado o progresso econômico, o qual, quando em
alguma parte é real, tem explicação em causas muito diversas, como, por
exemplo, a intensificação da produção industrial, introduzida em regiões
que antes nada disso possuíam, a valorização de enormes riquezas
naturais, exploradas com imensos lucros, sem o menor respeito dos
direitos humanos, o emprego enfim da coação brutal que dura e cruelmente
força os operários a pesadíssimos trabalhos com um salário de miséria.
Materialismo evolucionista de Marx
9. Ora, a doutrina que os comunistas em nossos dias espalham, proposta muitas vezes sob aparências capciosas e sedutoras, funda-se de fato nos princípios do materialismo
chamado dialético e histórico, ensinado por Karl Marx, de que os
teóricos do bolchevismo se gloriam de possuir a única interpretação
genuína. Essa doutrina proclama que não há mais que uma só realidade
universal, a matéria, formada por forças cegas e ocultas, que, através
da sua evolução natural, se vai transformando em planta, em animal, em
homem. Do mesmo modo, a sociedade humana, dizem, não é outra coisa mais
do que uma aparência ou forma da matéria, que vai evolucionando, como
fica dito, e por uma necessidade inelutável e um perpétuo conflito de
forças, vai pendendo para a síntese final: uma sociedade sem classes. É,
pois, evidente que neste sistema não há lugar sequer para a idéia de
Deus; é evidente que entre espírito e matéria, entre alma e corpo não há
diferença alguma; que a alma não sobrevive depois da morte, nem há
outra vida depois desta. Além disso, os comunistas, insistindo no método dialético do seu materialismo,
pretendem que o conflito, a que acima Nos referimos, o qual levará a
natureza à síntese final, pode ser acelerado pelos homens. É por isso
que se esforçam por tornarem mais agudos os antagonismos que surgem
entre as várias classes, da sociedade, porfiando porque a luta de
classes, tão cheia, infelizmente, de ódios e de ruínas, tome o aspecto
de uma guerra santa em prol do progresso da humanidade; e até mesmo,
porque todas as barreiras que se opõem a essas sistemáticas violências,
sejam completamente destruídas, como inimigas do gênero humano.
A que se reduzem o homem e a família
10.
Além disso, o comunismo despoja o homem da sua liberdade na qual
consiste a norma da sua vida espiritual; e ao mesmo tempo priva a pessoa
humana da sua dignidade, e de todo o freio na ordem moral, com que
possa resistir aos assaltos do instinto cego. E, como a pessoa humana,
segundo os devaneios comunistas, não é mais do que, para assim dizermos,
uma roda de toda a engrenagem, segue-se que os direitos naturais, que
dela procedem, são negados ao homem indivíduo, para serem atribuídos à
coletividade. Quanto às relações entre os cidadãos, uma vez que
sustentam o princípio da igualdade absoluta, rejeitam toda a hierarquia e
autoridade, que proceda de Deus, até mesmo a dos pais; porquanto, como
asseveram, tudo quanto existe de autoridade e subordinação, tudo isso,
como de primeira e única fonte, deriva da sociedade. Nem aos indivíduos
se concede direito algum de propriedade sobre bens naturais ou sobre
meios de produção; porquanto, dando como dão origem a outros bens, a sua
posse introduz necessariamente o domínio de um sobre os outros. E é
precisamente por esse motivo que afirmam que qualquer direito de
propriedade privada, por ser a fonte principal da escravidão econômica,
tem que ser radicalmente destruído.
11. Além disto, como esta
doutrina rejeita e repudia todo o caráter sagrado da vida humana,
segue-se por natural conseqüência que para ela o matrimônio e a família é
apenas uma instituição civil e artificial, fruto de um determinado
sistema econômico: por conseguinte, assim como repudia os contratos
matrimoniais formados por vínculos de natureza jurídico-moral, que não
dependam da vontade dos indivíduos ou da coletividade, assim rejeita a
sua indissolúvel perpetuidade. Em particular, para o comunismo
não existe laço algum da mulher com a família e com o lar. De fato,
proclamando o princípio da emancipação completa da mulher, de tal modo a
retira da vida doméstica e do cuidado dos filhos que a atira para a
agitação da vida pública e da produção coletiva, na mesma medida que o
homem. Mais ainda: os cuidados do lar e dos filhos devolve-os à
coletividade. Rouba-se enfim aos pais o direito que lhes compete de
educar os filhos, o qual se considera como direito exclusivo da
comunidade, e por conseguinte só em nome e por delegação dela se pode
exercer.
Em que se converteria a sociedade
12.
Que viria a ser, então, a sociedade humana, baseada em tais fundamentos
materialistas? Viria a ser uma coletividade, sem outra hierarquia mais
do que a derivada do sistema econômico. Teria por missão única a
produção de riqueza por meio do trabalho coletivo, e único fim o gozo
dos bens da terra num paraíso ameníssimo de delícias onde cada qual “produziria conforme as suas forças e receberia conforme as suas necessidades”.
É também de notar que o comunismo reconhece igualmente à coletividade o
direito, ou antes a arbitrariedade quase ilimitada, de sujeitar os
indivíduos ao jugo do trabalho coletivo, sem a menor consideração do seu
bem-estar pessoal; mais ainda, o direito de os forçar contra a sua
vontade e até pela violência. E nesta sociedade comunista proclamam que
tanto a moral como a ordem jurídica não brotam de outra fonte mais do
que do sistema econômico do tempo o que, por conseguinte, de sua
natureza são valores terrestres transitórios e mudáveis. Em suma, para
resumirmos tudo em poucas palavras, pretendem introduzir uma nova ordem
de coisas e inaugurar uma era nova de mais alta civilização, produto
unicamente duma cega evolução da natureza: “uma humanidade que tenha expulsado a Deus da terra”.
13.
E, quando as qualidades e disposições de espírito, que se requerem para
realizar semelhante sociedade, tiverem sido alcançadas por todos em tal
grau, que por fim tenha surgido aquele ideal utópico de sociedade, que
eles sonham, sem distinção de classes então o Estado político, que ao
presente unicamente se organiza como instrumento de domínio dos
capitalistas sobre os proletários, perderá totalmente a razão de ser e,
por necessidade natural, se dissolverá! Todavia, enquanto se não tiver
chegado a essa idade de ouro, os comunistas empregam o governo e o poder
público como o mais eficaz e universal instrumento, para atingirem o
seu fim.
14. Aqui tendes, Veneráveis Irmãos, diante dos olhos do
espírito, a doutrina que os comunistas bolchevistas e ateus pregam à
humanidade como novo evangelho, e mensagem salvadora de redenção!
Sistema cheio de erros e sofismas, igualmente oposto à revelação divina e
à razão humana; sistema que, por destruir os fundamentos da sociedade,
subverte a ordem social, que não reconhece a verdadeira origem, natureza
e fim do Estado; que rejeita enfim e nega os direitos, a dignidade e a
liberdade da pessoa humana.
DIFUSÃO
Promessas fascinadoras
15.
Mas donde vem que tal sistema, que a ciência já há muito ultrapassou e a
realidade dos fatos vai cada dia refutando, possa difundir-se tão
rapidamente por todas as partes do mundo? Facilmente poderemos
compreender esse fenômeno, se refletirmos que são muito poucas as
pessoas que têm penetrado a fundo a verdadeira natureza e fim do comunismo;
ao passo que são muitíssimos os que cedem facilmente à tentação,
habilmente apresentada sob as promessas mais deslumbrantes. É que os
propagandistas deste sistema afivelam esta máscara de verdade, a saber:
que não querem outra coisa mais que melhorar a sorte das classes
trabalhadoras; que pretendem não somente dar remédio oportuno aos abusos
provocados pela economia liberal, mas também conseguir uma
distribuição mais eqüitativa dos bens terrenos: objetivos estes que
certamente ninguém nega se possam atingir por meios legítimos. Contudo
os comunistas, por esses processos, explorando sobretudo a crise
econômica, que em toda a parte se sente, conseguem atrair ao seu partido
aqueles mesmos que, em virtude da doutrina que professam, abominam os
princípios do materialismo e os monstruosos crimes que não raro
se perpetram. E, como em qualquer erro há sempre qualquer centelha de
verdade, como acima vimos que sucedia até mesmo nesta questão, este
aspecto de verdade põem-no em relevo com requintada habilidade, com o
fim de dissimularem e ocultarem, quanto convém, aquela odiosa e desumana
brutalidade dos princípios e dos métodos de comunismo; e desse
modo conseguem seduzir até espíritos nada vulgares, os quais muitas
vezes a tal ponto se deixam entusiasmar que eles próprios se tornam uma
espécie de apóstolos, que vão extraviar com esses erros sobretudo os
jovens, facilmente expostos a se deixarem enredar por esses sofismas.
Além disso, os arautos do comunismo não ignoram que podem tirar
partido, tanto dos antagonismos de raça como das dissensões e lutas em
que se entrechocam as diferentes facções políticas, como enfim daquela
desorientação que lavra no campo da ciência, onde a própria idéia de
Deus emudece, para se infiltrarem nas Universidades e corroborarem os
princípios da sua doutrina com argumentos pseudocientíficos.
O liberalismo preparou o caminho ao comunismo
16.
Mas, para mais facilmente se compreender como é que puderam conseguir
que tantos operários tenham abraçado, sem o menor exame, os seus
sofismas, será conveniente recordar que os mesmos operários, em virtude
dos princípios do liberalismo econômico, tinham sido lamentavelmente
reduzidos ao abandono da religião e da moral cristã. Muitas vezes o
trabalho por turnos impediu até que eles observassem os mais graves
deveres religiosos dos dias festivos; não houve o cuidado de construir
igrejas nas proximidades das fábricas, nem de facilitar a missão do
sacerdote; antes pelo contrário, em vez de se lhes pôr embargo, cada dia
mais e mais se foram favorecendo as manobras do chamado laicismo. Aí
estão, agora, os frutos amargosíssimos dos erros que os Nossos
Predecessores e Nós mesmo mais de uma vez temos preanunciado. E assim,
por que nos havemos de admirar, ao vermos que tantos povos, largamente
descristianizados, vão sendo já pavorosamente inundados e quase
submergidos pela vaga comunista?
Propaganda astuta e vastíssima
17.
Além disso, a difusão tão rápida das idéias comunistas que se vão
sorrateiramente infiltrando por países grandes ou pequenos, cultos ou
menos civilizados, e até nas partes mais remotas do globo, tem sem
dúvida por causa esse fanatismo de propaganda encarniçada, como talvez
nunca se viu no mundo. E essa propaganda, emanada duma fonte única,
adapta-se astutamente às condições particulares dos povos; dispõe de
grandes meios financeiros, de inúmeras organizações, de congressos
internacionais concorridíssimos, de forças compactas e bem
disciplinadas; propaganda quer por jornais, revistas e folhas volantes,
pelo cinema, pelo teatro, pela radiofonia, pelas escolas enfim e pelas
Universidades, pouco a pouco vai invadindo todos os meios ainda os
melhores, sem darem talvez pelo veneno, que cada vez mais vai
infeccionando os espíritos e os corações.
Conspiração do silêncio na imprensa
18.
Outro auxiliar poderoso, que contribui para a avançada do comunismo, é
sem dúvida a conspiração do silêncio na maior parte da imprensa mundial,
que não se conforma com os princípios católicos. Conspiração dizemos:
porque aliás, não se explica facilmente como é que uma imprensa, tão
ávida de esquadrinhar e publicar até os mínimos incidentes da vida
cotidiana, sobre os horrores perpetrados na Rússia, no México e numa
grande parte de Espanha pode guardar, há tanto tempo, absoluto silêncio;
e da seita comunista, que domina em Moscou e tão largamente se estende
pelo universo em poderosas organizações, fala tão pouco. Mas todos sabem
que esse silêncio é em grande parte devido a exigências duma política,
que não segue inteiramente os ditames da prudência civil; e é
aconselhável e favorecido por diversas forças ocultas que já há muito
porfiam por destruir a ordem social cristã.
DEPLORÁVEIS CONSEQÜÊNCIAS
Rússia e México
19. Entretanto, aí estão à vista os deploráveis frutos dessa
propaganda fanática. Porque, onde quer que os comunistas conseguiram
radicar-se e dominar, - e aqui pensamos com particular afeto paterno nos
povos da Rússia e do México, - aí, como eles próprios abertamente o
proclamam, por todos os meios se esforçaram por destruir radicalmente os
fundamentos da religião e da civilização cristãs, e extinguir
completamente a sua memória no coração dos homens, especialmente da
juventude. Bispos e sacerdotes foram desterrados, condenados a trabalhos
forçados, fuzilados, ou trucidados de modo desumano; simples leigos,
tornados suspeitos por terem defendido a religião, foram vexados,
tratados como inimigos, e arrastados aos tribunais e às prisões.
Horrores do comunismo em Espanha
20. Até em países, onde - como sucede na Nossa amadíssima Espanha -
não conseguiu ainda a peste e o flagelo comunista produzir todas as
calamidades dos seus erros, desencadeou contudo, infelizmente, uma
violência furibunda e irrompeu em funestíssimos atentados. Não é esta ou
aquela igreja destruída, este ou aquele convento arruinado; mas, onde
quer que lhes foi possível, todos os templos, todos os claustros
religiosos, e ainda quaisquer vestígios da religião cristã, posto que
fossem monumentos insignes de arte e de ciência, tudo foi destruído até
os fundamentos! E não se limitou o furor comunista a trucidar bispos e
muitos milhares de sacerdotes, religiosos e religiosas, alvejando dum
modo particular aqueles e aquelas que se ocupavam dos operários e dos
pobres; mas fez um número muito maior de vítimas em leigos de todas as
classes, que ainda agora vão sendo imolados em carnificinas coletivas,
unicamente por professarem a fé cristã, ou ao menos por serem contrários
ao ateísmo comunista. E esta horripilante mortandade é perpetrada com
tal ódio e tais requintes de crueldade e selvajaria, que não se
julgariam possíveis em nosso século.
Ninguém de são critério, quer seja simples particular, quer homem de
Estado, cônscio da sua responsabilidade, ninguém absolutamente,
repetimos, pode deixar de estremecer de sumo horror, se refletir que
tudo quanto hoje está sucedendo na Espanha, pode amanhã repetir-se
também em outras nações civilizadas.
Frutos naturais do sistema
21. Nem se pode asseverar que semelhantes atrocidades são
conseqüências fatais de todas as grandes revoluções, como excessos
esporádicos de exasperação, comuns a qualquer guerra: não, são frutos
naturais do sistema, cuja estrutura não obedece a freio algum interno.
Um freio é necessário ao homem, tanto individualmente como socialmente
considerado; e é por isso que até os povos bárbaros reconheceram o
vínculo da lei natural, esculpida por Deus na alma de cada homem. E,
quando a observância dessa lei foi tida por todos como um dever sagrado,
viram-se nações antigas atingir um tal esplendor de grandeza, que
espanta, ainda mais até do que é razão, aqueles que só superficialmente
compunham os documentos da história humana. Mas quando se arranca das
mentes dos cidadãos a própria idéia de Deus, necessariamente os veremos
precipitar-se na crueldade mais selvagem, e na ferocidade dos costumes.
Luta contra tudo o que é divino
Luta contra tudo o que se chama Deus
22. É este o espetáculo que atualmente com suma dor contemplamos:
pela primeira vez na história estamos assistindo a uma insurreição,
cuidadosamente preparada e calculadamente dirigida contra “
tudo o que se chama Deus” (cfr. 2
Tess 1, 4). Efetivamente, o comunismo por sua natureza opõe-se a qualquer religião, e a razão por que a considera como o “
ópio do povo”,
é porque os seus dogmas e preceitos, pregando a vida eterna depois
desta vida mortal, apartam os homens da realização daquele futuro
paraíso, que são obrigados a conseguir na terra.
O terrorismo
23. Mas não é impunemente que se despreza a lei natural e o seu
autor, Deus; a conseqüência é que os esforços dos comunistas, assim como
nem sequer no campo econômico puderam até hoje realizar o seu desígnio,
assim também no futuro jamais o poderão conseguir. Não negamos que
esses esforços na Rússia contribuíram não pouco para sacudir os homens e
as suas instituições, daquela longa e secular inércia em que jaziam, e
que puderam, empregando todos os meios e processos; ainda mesmo
ilegitimamente, fazer alguma coisa para promover o progresso material;
mas sabemos por testemunhos absolutamente insuspeitos, e alguns bem
recentes ainda, que de fato nem sequer neste ponto se conseguiu o que
tanto se prometera. E não se esqueça, que aquela ditadura, toda
terrorismo e crueldade, impôs a inumeráveis cidadãos o jugo da
escravidão. Porque é de notar que também no terreno econômico é
imprescindível alguma norma de probidade a que se conforme, por dever de
consciência, quem exerce algum cargo; ora isso é indiscutível que o não
podem dar os princípios comunistas, nascidos dos sofismas do
materialismo. Por conseguinte, nada mais resta do que aquele pavoroso
terrorismo que se está vendo na Rússia, onde os antigos camaradas de
conspiração e de luta se vão dando a morte uns aos outros; mas esse
terrorismo criminoso, longe de conseguir pôr um dique à corrupção dos
costumes, nem sequer pode evitar a dissolução da estrutura social. Um
pensamento paternal para os povos oprimidos da Rússia
UM PENSAMENTO PATERNAL AOS POVOS OPRIMIDOS, NA RÚSSIA
24. Com isto, porém, não é
nossa intenção condenar em massa os povos da União Soviética, aos quais,
pelo contrário, consagramos o mais vivo afeto paterno. É que, de fato,
sabemos que muitos deles gemem sob o jugo da mais iníqua escravidão, que
lhes foi imposta por homens, pela maior parte estranhos aos verdadeiros
interesses daquele povo; e que muitos outros foram enganados por
promessas e esperanças falazes. O que Nós condenamos é o sistema e seus
autores e fautores que consideraram aquela nação como o terreno mais
apto para lançarem a semente do seu sistema, há muito tempo preparada, e
de lá a disseminarem por todas as regiões do globo.
25.
Depois de termos focado os erros e os processos sedutores e violentos
do comunismo bolchevista e ateu, é já tempo, Veneráveis Irmãos, de
opor-lhe sumariamente a verdadeira noção da “Cidade humana”, que é tal
como perfeitamente sabeis, qual no-la ensinam a razão humana e a
revelação Divina, por intermédio da Igreja, Mestra dos povos.
SUPREMA REALIDADE: DEUS!
26. E antes de mais nada
importa observar que acima de todas as demais realidades, está o sumo,
único e supremo Espírito, Deus, Criador onipotente de todo o universo,
Juiz sapientíssimo e justíssimo de todos os homens. Este Ser supremo,
que é Deus, é a refutação e condenação mais absoluta das impudentes e
mentirosas falsidades do comunismo. E na verdade, não é porque os homens
crêem em Deus, que Deus existe; mas porque Deus existe realmente, por
isso crêem nele e lhe dirigem as suas súplicas todos quantos não cerram
pertinazmente os olhos do espírito à luz da verdade.
QUE SÃO O HOMEM E A FAMÍLIA, SEGUNDO A RAZÃO E A FÉ
27. Quanto ao homem, o que a
fé católica e a nossa razão ensinam, já Nós, ao explanarmos os pontos
fundamentais desta doutrina, o propusemos na Encíclica sobre a educação
cristã da juventude (Encíclica Divini illius Magistri,
31 de dezembro de 1929: A.A.S., vol. XXII (1930), págs. 49-86). O homem
tem uma alma espiritual e imortal; e, assim como é uma pessoa, dotada
pelo supremo Criador de admiráveis dons de corpo e de espírito assim se
pode chamar, como diziam os antigos, um verdadeiro “microcosmo”,
isto é, um pequeno mundo, por isso que de muito longe transcende e
supera a imensidade dos seres do mundo inanimado. Não somente nesta vida
mortal, mas também na que há de permanecer eternamente, o seu fim
supremo é unicamente Deus; e, tendo sido elevado pela graça santificante
à dignidade de filho de Deus, é incorporado no Reino de Deus, no corpo
místico de Jesus Cristo. Conseqüentemente, dotou-o Deus de múltiplas e
variadas prerrogativas, tais como: direito à vida, à integridade do
corpo, aos meios necessários à existência; direito de tender ao seu
último fim, pelo caminho traçado por Deus; direito enfim de associação,
de propriedade particular, e de usar dessa propriedade.
28. Além
disso, assim como o matrimônio e o direito ao seu uso natural são de
origem divina, assim também a constituição e as prerrogativas
fundamentais da família derivam, não do arbítrio humano, nem de fatores
econômicos, senão do próprio Criador supremo de todas as coisas. Este
assunto tratamo-lo já com suficiente desenvolvimento na Encíclica sobre a
santidade do matrimônio (Encíclica Casti Connubii, 31 de dezembro de 1930: A.A.S., vol. XXII (1930), págs. 539-582), e na Encíclica acima citada sobre a educação.
QUE É A SOCIEDADE
Mútuos direitos e deveres entre o homem e a sociedade
29.
Mas Deus destinou igualmente o homem para a sociedade civil, que a sua
mesma natureza reclama. É que, no plano do Criador, a sociedade é um
meio natural, de que todo o cidadão pode e deve servir-se para a
consecução do fim que lhe é proposto, pois a sociedade civil existe para
o homem e não o homem para a sociedade. Isto, porém, não se deve
entender no sentido do liberalismo individualista, que subordina a
sociedade à utilidade egoísta do indivíduo, mas sim no sentido que,
mediante a união orgânica com a sociedade, todos possam, pela mútua
colaboração, alcançar a verdadeira felicidade terrestre; e que, por meio
da sociedade, floresçam e prosperem todas as aptidões individuais e
sociais, dadas ao homem pela natureza, aptidões que transcendem o
imediato interesse do momento, e refletem na sociedade a perfeição
divina: o que no homem isolado de modo nenhum se pode verificar. Mas até
este último objetivo da sociedade é, em última análise, ordenado ao
homem, para que reconheça este reflexo da perfeição divina, e o
desenvolva assim em louvor e adoração ao Criador. É que só o homem, e
não qualquer sociedade humana por si, é dotado de razão e de vontade
moralmente livre.
30. Portanto, assim como o homem não pode
furtar-se aos deveres que por vontade de Deus o ligam à sociedade civil,
e é por isso que os representantes da autoridade têm direito de o
forçar ao cumprimento do próprio dever, caso ele se recusasse
ilegitimamente; assim também não pode a sociedade privar o cidadão dos
direitos pessoais que o Criador lhe concedeu (os mais importantes
apontamo-los acima sumariamente) nem tornar-lhe impossível o seu uso. É,
pois, conforme à razão e às suas exigências naturais, que todas as
coisas terrenas sejam para serviço e utilidade do homem, e assim, por
meio dele, voltem ao Criador. Aqui se aplica perfeitamente o que o
Apóstolo das Gentes escreve aos coríntios sobre a economia da salvação
cristã: “Tudo... é vosso, mas vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus” (1 Cor
3, 23). E assim, enquanto a doutrina comunista de tal maneira diminui a
pessoa humana, que inverte os termos das relações entre o homem e a
sociedade, a razão, pelo contrário, e a revelação divina elevam-na a tão
sublimes alturas.
A ordem econômico-social
31. Sobre a ordem econômico-social e sobre a questão operária já o Nosso Predecessor, de feliz memória, Leão XIII, na Encíclica Rerum Novarum (15 de maio de 1891: Acta Leonis
XIII, vol. XI, págs. 97-144) deu normas eficazes: normas que Nós
adotamos às condições e exigências dos tempos presentes pela nossa
Encíclica sobre a restauração cristã da ordem social (Encíclica Quadragesimo anno,
15 de maio de 1931: A.A.S., vol. XXIII (1931), págs. 177-228). Nessa
Encíclica, insistindo de novo com toda a força na secular doutrina da
Igreja acerca da natureza peculiar da propriedade privada no seu aspecto
individual e social, assinalamos com toda a clareza e precisão os
direitos e a dignidade do trabalho humano, as relações do mútuo apoio e
auxílio que devem existir entre o capital e o trabalho, e o salário,
indispensável ao operário e a sua família, que por justiça lhe é devido.
32. Nessa mesma Encíclica mostramos também que a sociedade
humana só então, poderá ser salva da funestíssima ruína, a que é
arrastada pelos princípios do liberalismo, alheios a toda a moralidade,
quando os preceitos da justiça social e da caridade cristã impregnarem e
penetrarem a ordem econômica e a organização civil; o que
indubitavelmente não podem conseguir nem a luta de classes, nem os
atentados do terror, nem o abuso ilimitado e tirânico do poder do
Estado. Advertimos outrossim, que a verdadeira prosperidade do povo se
deve procurar segundo os princípios dum são corporativismo, que
reconheça e respeite os vários graus da hierarquia social; e que é
igualmente necessário que todas as corporações operárias se organizem em
harmônica unidade para poderem tender ao bem comum da sociedade; e que,
por conseguinte, a função genuína e peculiar do poder público consiste
em promover, quanto lhe seja possível, esta harmonia e coordenação de
todas as forças sociais.
Hierarquia social e prerrogativas do Estado
33.
Para assegurar esta tranqüila harmonia pela colaboração orgânica de
todos, a doutrina católica confere aos governantes tanta dignidade e
autoridade, quanta é necessária para que eles com vigilante e previdente
solicitude salvaguardem os direitos divinos e humanos, que as Sagradas
Escrituras e os Padres da Igreja tanto inculcam. E neste passo é
necessário observar que erram vergonhosamente os que sem consideração
atribuem a todos os homens direitos iguais na sociedade civil e
asseveram que não existe legítima hierarquia. Sobre este ponto baste-Nos
recordar as Encíclicas do Nosso Predecessor Leão XIII, acima
mencionadas, especialmente a que trata do poder do Estado (Encíclica Diuturnum illud, 29 de junho de 1881: Acta Leonis XIII, vol. II, págs. 269-287) e a outra que versa sobre a constituição cristã do Estado (Encíclica Immortale Dei, 1 de novembro de 1885: Acta Leonis
XIII, vol. V, págs. 118-150). Nelas encontram os católicos
luminosamente expostos os princípios da razão e da fé, que os tornarão
aptos para as premunirem contra os erros e perigos da concepção
comunista acerca do Estado. A espoliação dos direitos e a escravização
do homem, a negação da origem primária e transcendente do Estado e do
poder do Estado, o abuso horrível do poder público ao serviço do
terrorismo coletivista, são precisamente o contrário do que é conforme à
ética natural e à vontade do Criador. Tanto o homem como a sociedade
civil têm origem no Criador, e foram por Ele mutuamente ordenados um
para a outra; por isso nenhum dos dois pode furtar-se a cumprir os
deveres correlativos, nem recusar ou reduzir os direitos. O próprio
Criador regulou esta mútua relação nas suas linhas fundamentais, e é
injusta a usurpação, que o comunismo se arroga, de impor, em lugar da
lei divina baseada nos imutáveis princípios da verdade e da caridade, um
programa político de partido, que promana do capricho humano e ressuma
ódio.
BELEZA DESTA DOUTRINA DA IGREJA
34. A Igreja ao ensinar esta
luminosa doutrina, não tem outro fim mais que realizar o venturoso
anúncio cantado pelos Anjos sobre a gruta de Belém, no nascimento
Redentor: “Glória a Deus e... paz aos homens” (Lc 2, 14):
paz verdadeira e verdadeira felicidade, até mesmo na terra, quanto é
possível, encaminhada a preparar a felicidade eterna, mas paz reservada
aos homens de boa vontade. Esta doutrina é igualmente distante de todos
os extremos do erro como de todas as exagerações dos partidos ou
sistemas que a eles aderem, conserva sempre o equilíbrio da verdade e da
justiça; reivindica-o na teoria, aplica-o e promove-o na prática,
conciliando os direitos e os deveres de um com os dos outros, como a
autoridade com a liberdade, a dignidade do indivíduo com a do Estado, a
personalidade humana no súdito com a representação divina no superior,
e, por conseguinte, a sujeição devida e o amor ordenado de si mesmo, da
família e da pátria, com o amor das outras famílias e dos outros povos,
fundado no amor de Deus, pai de todos, primeiro princípio e último fim.
Nem separa a justa preocupação dos bens temporais a palavra de seu
divino Fundador: “Buscai primeiro o reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais vos será dado por acréscimo” (Mt
6, 33), está longe de se desinteressar das coisas humanas, de
prejudicar os progressos da sociedade e de impedir os adiantamentos
materiais, que pelo contrário sustenta e promove da maneira mais
razoável e eficaz. E assim, até mesmo no campo econômico-social, a
Igreja, muito embora não tenha jamais apresentado como seu um
determinado sistema técnico, por não ser essa a sua missão, fixou
contudo claramente princípios e diretivas que, prestando-se a diversas
aplicações concretas segundo as várias condições dos tempos, dos lugares
e dos povos, assinalam o caminho seguro para obter o feliz progresso da
sociedade.
35. A sabedoria e suma utilidade desta doutrina é
admitida por quantos verdadeiramente a conhecem. Com justificada razão
puderam afirmar eminentes Estadistas que, depois de terem estudado os
diversos sistemas sociais, nada haviam encontrado mais sábio que os
princípios expostos nas Encíclicas Rerum Novarum e Quadragesimo anno.
Até em países não católicos, e nem sequer cristãos, se reconhece quão
vantajosas são para a sociedade humana as doutrinas sociais da Igreja; e
assim, há apenas um mês, um eminente homem político, não cristão, do
Extremo Oriente, não duvidou proclamar que a Igreja com a sua doutrina
de paz e fraternidade cristã traz uma altíssima contribuição para o
estabelecimento e conservação da paz construtiva entre as nações. Mas
ainda: até os próprios comunistas, como sabemos por autênticas relações
que afluem de toda a parte a este Centro de Cristandade, se não estão
ainda de todo corrompidos, quando se lhes expõe a doutrina social da
Igreja, reconhecem a sua superioridade sobre as doutrinas dos seus
caudilhos e mestres. Somente os obcecados pela paixão e pelo ódio fecham
os olhos à luz da verdade e a combatem obstinadamente.
SERÁ VERDADE QUE A IGREJA NÃO PROCEDEU SEGUNDO A SUA DOUTRINA?
36. Mas os inimigos da Igreja,
constrangidos embora a reconhecer a sabedoria da sua doutrina,
assacam-lhe o não ter sabido conformar os seus atos com aqueles
princípios, e afirmam por isso a necessidade de provocar outros
caminhos. Quão falsa e injusta seja esta acusação, demonstra-o toda a
história do cristianismo. Para não Nos referirmos senão a um ou outro
ponto característico, foi o cristianismo o primeiro a propagar, por uma
forma e com uma amplitude e convicção desconhecidas nos séculos
precedentes, a verdadeira e universal fraternidade de todos os homens de
qualquer condição ou raça, contribuindo assim poderosamente para a
abolição da escravatura, não com revoltas sangrentas, senão pela força
interna da sua doutrina, que à orgulhosa patrícia romana fazia ver na
sua escrava uma irmã em Cristo. Foi o cristianismo, que adora o Filho de
Deus feito homem por amor dos homens e convertido em “Filho do carpinteiro”, mais ainda, “carpinteiro” ele próprio (cfr. Mt 13, 55; Mc
6, 3), foi o cristianismo que sublimou à sua verdadeira dignidade o
trabalho manual: aquele trabalho manual, antes tão desprezado que até o
discreto Marco Túlio Cícero, resumindo a opinião geral do seu tempo, não
receou escrever estas palavras, de que hoje se envergonharia qualquer
sociólogo: “Todos os operários se ocupam em misteres desprezíveis, pois a oficina nada pode ter de nobre” (M.T. Cícero, De officiis, L. I, c. 42).
37.
Fiel a estes princípios, a Igreja regenerou a sociedade humana; sob a
sua influência surgiram admiráveis obras de caridade, poderosas
corporações de artistas e trabalhadores de todas as categorias. O liberalismo
do século passado zombou delas, é certo, como de velharias da Idade
Média; elas, porém, impõem-se hoje à admiração dos nossos contemporâneos
que em muitos países procuram fazer reviver de algum modo a sua idéia
fundamental. E quando outras correntes entravavam a obra e punham
obstáculos ao influxo salutar da Igreja, esta até nossos dias não cessou
nunca de admoestar os extraviados. Basta recordar com que firmeza,
energia e constância o Nosso Predecessor Leão XIII reivindicou para o
operário o direito de associação, que o liberalismo dominante nos
Estados mais poderosos se obstinava em negar-lhe. E esta influência da
doutrina da Igreja ainda atualmente é maior do que parece, porque é
grande e certo, posto que invisível e difícil de medir, o predomínio das
idéias sobre os fatos.
38. Pode bem dizer-se com toda a verdade que a Igreja à semelhança de Cristo, passa através dos séculos, fazendo bem
a todos. Não haveria nem socialismo nem comunismo, se os que governam
os povos não tivessem desprezado os ensinamentos e as maternais
advertências da Igreja; eles, porém, quiseram, sobre as bases do
liberalismo e do laicismo, levantar outros edifícios sociais que à
primeira vista pareciam poderosas e magníficas construções, mas bem
depressa se viu que careciam de sólidos fundamentos, e se vão
miseravelmente desmoronando, um após outro, como tem que desmoronar-se
tudo quanto não se apoia sobre a única pedra angular, que é Jesus
Cristo.
NECESSIDADE DE RECORRER A MEIOS DE DEFESA
39. Tal é, Veneráveis Irmãos, a
doutrina da Igreja, a única que, como em qualquer outro campo, assim
também no campo social, pode projetar verdadeira luz, a única doutrina
de salvação em face da ideologia comunista. Mas é necessário que esta
doutrina se realize cada vez mais na prática da vida, conforme o aviso
do Apóstolo São Tiago: “Sede... cumpridores da palavra e não simples ouvintes, enganando-vos a vós mesmos” (Tg
1, 22), porquanto, o que na hora atual há de mais urgente é aplicar com
energia os remédios oportunos, para opor-se eficazmente à revolução
ameaçadora que se vai preparando. Alimentamos a firme confiança de que
ao menos a paixão com que dia e noite trabalham os filhos das trevas na
sua propaganda materialista e atéia, logre estimular santamente os
filhos da luz a um zelo igual, se não maior, da honra da Majestade
divina. 40. Que é, pois, necessário fazer, que remédios empregar, para
defender a Cristo e a civilização cristã contra aquele pernicioso
inimigo? Como um pai no seio da família, Nós quiséramos conversar, quase
na intimidade, sobre os deveres que a grande luta de nossos dias impõe a
todos os filhos da Igreja, dirigindo também a Nossa paternal
advertência aos filhos que dela se afastaram.
RENOVAÇÃO DA VIDA CRISTÃ
Remédio Fundamental
41.
Como em todos os períodos mais tormentosos da história da Igreja, assim
hoje também o remédio fundamental é uma sincera renovação da vida
privada e pública, segundo os princípios do Evangelho em todos aqueles
que se gloriam de pertencer ao Rebanho de Cristo, a fim de serem
verdadeiramente o sal da terra, que preserve a sociedade humana de tal
corrupção.
42. Com sentimentos de profunda gratidão para com o Pai das luzes, de quem desce “toda a dádiva excelente e todo o dom perfeito” (Tg
1, 17), vemos por toda a parte sinais consoladores dessa renovação
espiritual, não só em tantas almas singularmente escolhidas, que nestes
últimos anos se têm elevado ao cume da mais sublime santidade, e em
tantas outras, cada vez mais numerosa, que generosamente caminham para a
mesma luminosa meta, mas também no reflorescimento de uma piedade
sentida e vivida, em todas as classes da sociedade, até nas mais cultas,
como pusemos em relevo no Nosso recente Motu proprio In multis solaciis,
de 28 do passado outubro, por ocasião da reorganização da Pontifícia
Academia das Ciências (A.A.S., vol. XXVIII (1936), págs. 421-424).
43.
Não podemos, contudo, negar que muito resta ainda por fazer neste
caminho da renovação espiritual. Até mesmo em países católicos,
demasiados são os que são católicos quase só de nome; demasiados,
aqueles que, seguindo embora mais ou menos fielmente as práticas mais
essenciais da religião que se ufanam de professar, não se preocupam de
melhor a conhecer, nem de adquirir convicções, mais íntimas e profundas,
e menos ainda de fazer que ao verniz exterior corresponda o interno
esplendor de uma consciência reta e pura, que sente e cumpre todos os
seus deveres sob o olhar de Deus. Sabemos quanto o Divino Salvador
aborrece esta vã e falaz exterioridade, Ele que queria que todos
adorassem o Pai “em espírito e verdade” (Jo 4, 23). Quem
não vive verdadeira e sinceramente segundo a fé que professa, não poderá
hoje, que tão violento sopra o vento da luta e da perseguição, resistir
por muito tempo, mas será miseravelmente submergido por este novo
dilúvio que ameaça o mundo; e assim, enquanto se prepara por si mesmo a
própria ruína, exporá também ao ludibrio o nome cristão.
Desapego dos bens terrenos
44.
E neste passo queremos, Veneráveis Irmãos, insistir mais
particularmente sobre dois ensinamentos do Senhor, que têm especial
conexão com as atuais condições do gênero humano: o desapego dos bens
terrenos e o preceito da caridade. “Bem-aventurados os pobres de espírito” foram as primeiras palavras que saíram dos lábios do Divino Mestre no sermão da Montanha (Mt
5, 3). E esta lição é mais que nunca necessária, nestes tempos de
materialismo sedento de bens e prazeres da terra. Todos os cristãos,
ricos ou pobres, devem ter sempre fixo o olhar no céu, recordando que “não temos aqui cidade permanente, mas vamos buscando a futura” (Hbr
13, 14). Os ricos não devem pôr nas coisas da terra a sua felicidade,
nem dirigir à conquista desses bens os seus melhores esforços; mas,
considerando-se apenas como administradores que sabem terão de dar
contas ao supremo Senhor, sirvam-se deles como de meios preciosos que
Deus lhes concede para fazerem bem; e não deixem de distribuir aos
pobres o supérfluo, segundo o preceito evangélico (cfr. Lc 11, 41). Doutra forma verificar-se-á neles e em suas riquezas a severa sentença de São Tiago Apóstolo: “Eia,
pois, ó ricos, chorai, soltai gritos por causa das misérias que virão
sobre vós. As vossas riquezas apodreceram, e os vossos vestidos foram
comidos pela traça. O vosso ouro e a vossa prata enferrujaram-se e a sua
ferrugem dará testemunho contra vós, e devorará as vossas carnes como
um fogo. Juntastes para vós um tesouro de ira para os últimos dias...” (Tg 5, 1-3).
45.
Mas os pobres, por sua vez, esforçando-se muito embora, segundo as leis
da caridade e da justiça, por se proverem do necessário e até mesmo por
melhorarem de condição, devem também permanecer sempre “pobres de espírito” (Mt
5, 3), estimando mais os bens espirituais que os bens e gozos terrenos.
Recordem-se, além disso, que jamais se logrará fazer desaparecer do
mundo as misérias, as dores, as tribulações, a que estão sujeitos ainda
aqueles que exteriormente parecem mais felizes. E assim, a todos é
necessária a paciência, aquela paciência cristã que eleva o coração às
divinas promessas de uma felicidade eterna. “Sede, pois, pacientes, irmãos”, vos diremos ainda com São Tiago, “até
à vinda do Senhor. Vede como o lavrador espera o precioso fruto da
terra, tendo paciência, até que receba o (fruto) temporão e o serôdio.
Sede, pois, pacientes também vós, e fortalecei os vossos corações;
porque a vinda do Senhor está próxima” (Tg 5, 7-8). Só assim se cumprirá a consoladora promessa do Senhor: “Bem-aventurados os pobres”.
E não é esta uma consolação e promessa vã, como são as promessas dos
comunistas; mas são palavras de vida, que encerram uma realidade
suprema, palavras que se verificam plenamente aqui na terra e depois na
eternidade. E na verdade, quantos pobres, nestas palavras e na esperança
do reino dos céus, proclamando já propriedade sua: “porque vosso é o reino de Deus” (Lc
6, 20), encontram uma felicidade, que tantos ricos não logram em suas
riquezas, sempre inquietos e sempre torturados como andam pela sede de
possuir ainda mais.
Caridade cristã
46.
Muito mais importante ainda, como remédio do mal de que tratamos, ou
pelo menos mais diretamente ordenado a curá-lo, é o preceito da
caridade. Queremos referir-Nos àquela caridade cristã “paciente e benigna” (1 Cor
13, 4), que evita todos os ares de proteção humilhante e qualquer
aparência de ostentação; aquela caridade, que desde os inícios do
cristianismo ganhou para Cristo os mais pobres dentre os pobres, os
escravos; e testemunhamos o Nosso reconhecimento a todos quantos nas
obras de beneficência, desde as conferências de São Vicente de Paulo até
às grandes organizações recentes de assistência social, têm exercido e
exercem as obras de misericórdia corporal e espiritual. Quanto mais
experimentarem em si mesmos os operários e os pobres o que o espírito de
amor, animado pela virtude de Cristo, faz por eles, tanto mais se
despojarão do preconceito de que o cristianismo perdeu a sua eficácia e a
Igreja está da parte daqueles que exploram o seu trabalho.
47.
Mas, quando vemos dum lado uma multidão de indigentes que, por várias
causas alheias à sua vontade, estão verdadeiramente oprimidos pela
miséria, e do outro lado, junto deles, tantos que se divertem
inconsideradamente e esbanjam enormes somas em futilidades, não podemos
deixar de reconhecer com dor que não é bem observada a justiça, mas que
nem sempre se aprofundou suficientemente o preceito da caridade cristã
nem se vive conforme a ele na prática cotidiana. Desejamos, portanto,
Veneráveis Irmãos, que seja mais e mais explicado por palavra e por
escrito este divino preceito, precioso distintivo deixado por Cristo a
seus verdadeiros discípulos, este preceito, que nos ensina a ver nos que
sofrem a Jesus em pessoa e nos impõe o dever de amar os nossos irmãos,
como o divino Salvador nos amou a nós, isto é, até ao sacrifício de nós
mesmos e, se necessário for, até da própria vida. Meditem, pois, todos e
muitas vezes aquelas palavras consoladoras, por um lado, mas temerosas
por outro, da sentença final que pronunciará o Juiz supremo no último
dia: “Vinde benditos de meu Pai...; porque tive fome, e me destes de
comer, tive sede e me destes de beber... Em verdade vos digo que todas
as vezes que o fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a
mim que o fizestes” (Mt 25, 34-40). E pelo contrário: “Apartai-vos
de mim, malditos, para o fogo eterno... porque tive fome, e não me
destes de comer; tive sede, e não me destes de beber... Na verdade vos
digo: todas as vezes que o não fizestes a um destes mais pequeninos, foi
a mim que o não fizestes” (Mt 25, 41-45).
48. Para
assegurar, pois, a vida eterna, e poder eficaz mente socorrer os
necessitados, é necessário voltar a uma vida mais modesta; renunciar aos
prazeres, muitas vezes até pecaminosos, que o mundo hoje em dia oferece
em tanta abundância; esquecer-se a si mesmo por amor do próximo.
Virtude divina de regeneração se encontra neste “mandamento novo” (como lhe chamava Jesus) da caridade cristã (Jo
13, 34), cuja fiel observância infundirá nos corações uma paz interna
desconhecida do mundo, e remediará eficazmente os males que afligem a
humanidade.
Deveres de estrita justiça
49. Mas a caridade jamais será verdadeira caridade, se não tiver sempre em conta a justiça. O Apóstolo ensina que “quem ama o próximo cumpre a lei”; e dá a razão:
“por quanto não cometerás adultério, não matarás, não furtarás... e
qualquer outro preceito se resume nesta fórmula: Amarás o teu próximo
como a ti mesmo” (Rom 13, 8-9). Se, pois, segundo o Apóstolo,
todos os deveres se reduzem ao único preceito da verdadeira caridade,
ainda aqueles que são de estrita justiça, como não matar, não roubar;
uma caridade que prive o operário do salário a que tem estrito direito,
não é caridade mas um nome vão e uma vã aparência de caridade. Nem o
operário precisa de receber como esmola o que lhe pertence por justiça;
nem pode ninguém pretender eximir-se dos grandes deveres impostos pela
justiça com pequeninas dádivas de misericórdia. A caridade e a justiça
impõem deveres, muitas vezes acerca do mesmo objeto, mas sob aspectos
diversos; e os operários, a estes deveres que lhes dizem respeito, são
juntamente muito sensíveis, em razão da sua própria dignidade.
50.
É por isso que de modo especial Nos dirigimos a vós, patrões e
industriais cristãos, cuja missão é muitas vezes tão difícil, por
carregardes com a herança dos erros de um regime econômico iníquo que
exerceu a sua ruinosa influência durante muitas gerações. Lembrai-vos da
vossa responsabilidade. Triste é dizê-lo, mas é muito verdade que o
modo de proceder de certos meios católicos contribui para abalar a
confiança dos trabalhadores na religião de Jesus Cristo. Não queriam
eles compreender que a caridade cristã exige o reconhecimento de certos
direitos devidos ao operário, e que Igreja explicitamente lhe
reconheceu. Como julgar do proceder de patrões católicos, que em algumas
partes conseguiram impedir a leitura da Nossa Encíclica Quadragesimo anno
em suas igrejas patronais? ou daqueles industriais católicos que até
hoje se têm mostrado adversários dum movimento que o direito de
propriedade, reconhecido pela Igreja, tenha sido por vezes empregado
para defraudar o operário do seu justo salário e dos seus direitos
sociais?
Justiça Social
51. Efetivamente,
além da justiça comutativa, há a justiça social que impõe, também,
deveres a que nem patrões nem operários se podem furtar. E é
precisamente próprio da justiça social exigir dos indivíduos quanto é
necessário ao bem comum. Mas, assim como no organismo vivo não se provê
ao todo, se não se dá a cada parte e a cada membro tudo quanto
necessitam para exercerem as suas funções; assim também se não pode
prover ao organismo social e ao bem de toda a sociedade, se não se dá a
cada parte e a cada membro, isto é, aos homens dotados da dignidade de
pessoa, tudo quanto necessitam para desempenharem as suas funções
sociais. O cumprimento dos deveres da justiça social terá como fruto uma
intensa atividade de toda a vida econômica, desenvolvida na
tranqüilidade e na ordem, e se mostrará assim a saúde do corpo social,
do mesmo modo que a saúde do corpo humano se reconhece pela atividade
inalterada, e ao mesmo tempo plena e frutuosa, de todo o organismo.
52.
Não se pode, porém, dizer que se satisfez à justiça social, se os
operários não têm assegurada a sua própria sustentação e a de suas
famílias com um salário proporcionado a este fim; se não se lhes
facilita o ensejo de adquirir uma modesta fortuna, prevenindo assim a
praga do pauperismo universal; se não se tomam providências a seu favor,
com seguros públicos e privados, para o tempo da velhice, da doença ou
do desemprego. Numa palavra, para repetirmos o que dissemos na Nossa
Encíclica Quadragesimo anno: “A
economia social estará solidamente constituída e obterá seus fins, só
quando a todos e a cada um forem subministrados todos os bens que se
podem conseguir com as forças e subsídios naturais, com a técnica, com a
organização social do fator econômico. Esses bens devem ser em tanta
quantidade, quanta é necessária, assim para satisfazer às necessidades e
honestas comodidades, como para elevar os homens àquela condição de
vida mais feliz, que, obtida e gozada de modo regrado e prudente, não só
não é de obstáculo à virtude, mas até a favorece poderosamente” (Encíclica Quadragesimo anno, 15 de maio de 1931: A.A.S., vol. XXIII (1931), pág. 202).
53.
Se, pois, como sucede cada vez mais freqüentemente no salariado, a
justiça não pode ser observada pelos particulares, a não ser que todos
concordem em praticá-la conjuntamente, mediante instituições que unam
entre si os patrões, para evitar entre eles uma concorrência
incompatível com a justiça devida aos trabalhadores, o dever dos
empresários e patrões é sustentar e promover essas instituições
necessárias, que se tornam o meio normal para se poderem cumprir os
deveres de justiça. Mas lembrem-se também os trabalhadores dos seus
deveres de caridade e justiça para com os patrões e estejam persuadidos
que assim salvaguardarão melhor até os próprios interesses. 54. Assim,
pois, se se considera o conjunto da vida econômica, - como já notamos na
Nossa Encíclica Quadragesimo anno
- não se conseguirá que nas relações econômico-sociais reine a mútua
colaboração da justiça e da caridade, senão por meio dum corpo de
instituições profissionais e interprofissionais sobre bases solidamente
cristãs, coligadas entre si e que constituam, sob formas diversas e
adaptadas aos lugares e circunstâncias, o que se chamava a Corporação.
ESTUDO E DIFUSÃO DA DOUTRINA SOCIAL
55. Para dar a esta ação
social mais eficácia, é muito necessário promover o estudo dos problemas
sociais à luz da doutrina da Igreja e difundir os seus ensinamentos sob
a égide da autoridade de Deus, constituída na mesma Igreja. Se o modo
de proceder de alguns católicos deixou a desejar no campo
econômico-social, isso aconteceu muitas vezes por não conhecerem
suficientemente nem meditarem o ensino dos Sumos Pontífices sobre o
assunto. Por isso, é sumamente necessário que em todas as classes da
sociedade se promova mais intensa formação social, correspondente ao
diverso grau de cultura intelectual, e se procure com toda a solicitude e
empenho a mais ampla difusão dos ensinamentos da Igreja também entre a
classe operária. Iluminem-se as mentes com a luz segura da doutrina
católica e inclinem-se as vontades a segui-la e a aplicá-la como norma
reta de vida, pelo cumprimento consciencioso dos múltiplos deveres
sociais. Combata-se desse modo aquela incoerência e descontinuidade na
vida cristã, por Nós várias vezes deplorada, pela qual alguns, enquanto
aparentemente são fiéis no cumprimento dos seus deveres religiosos, no
campo do trabalho ou da indústria ou da profissão, ou no comércio, ou no
emprego, por um deplorável desdobramento de consciência, levam uma vida
muito em desarmonia com as normas tão claras da justiça e da caridade
cristã, dando assim grave escândalo aos fracos e oferecendo aos maus
fácil pretexto para desacreditarem a própria Igreja.
56.
Grandemente pode contribuir para esta renovação a imprensa católica, que
pode e deve, de modo variado e atraente, procurar dar a conhecer cada
vez melhor a doutrina social, informar com exatidão, mas também com a
devida amplidão, acerca da atividade dos inimigos, referir os meios de
combate que se mostraram os mais eficazes em diversas regiões, propor
idéias úteis e gritar alerta contra as astúcias e enganos com que os
comunistas procuram, e com resultado, atrair a si até homens de boa-fé.
PREMUNIR-SE CONTRA AS CILADAS DO COMUNISMO
57. Sobre este ponto
insistimos na Nossa Alocução, de 12 de maio do ano passado, mas julgamos
necessário, Veneráveis Irmãos, chamar de novo sobre ele, de modo
particular, a vossa atenção. Ao princípio, o comunismo mostrou-se tal
qual era em toda a sua perversidade; mas bem depressa se capacitou de
que desse modo afastava de si os povos; e por isso mudou de tática e
procura atrair as multidões com vários enganos, ocultando os seus
desígnios sob a máscara de ideais, em si bons e atraentes. Assim, vendo o
desejo geral de paz, os chefes do comunismo fingem ser os mais zelosos
fautores e propagandistas do movimento a favor da paz mundial; mas ao
mesmo tempo excitam a uma luta de classes que faz correr rios de sangue,
e, sentindo que não têm garantias internas de paz, recorrem a
armamentos ilimitados. Assim, sob vários nomes que nem por sombras
aludem ao comunismo, fundam associações e periódicos que servem depois
unicamente para fazerem penetrar as suas idéias em meios, que doutra
forma lhe não seriam facilmente acessíveis, procuram até com perfídia
infiltrar-se em associações católicas e religiosas. Assim, em outras
partes, sem renunciarem um ponto a seus perversos princípios, convidam
os católicos a colaborar com eles no campo chamado humanitário e
caritativo, propondo às vezes, até coisas completamente conformes ao
espírito cristão e à doutrina da Igreja. Em outras partes levam a
hipocrisia até fazer crer que o comunismo, em países de maior fé e de
maior cultura, tomará outro aspecto mais brando, não impedirá o culto
religioso e respeitará a liberdade das consciências. Há até quem,
reportando-se a certas alterações recentemente introduzidas na
legislação soviética, deduz que o comunismo está em vésperas de
abandonar o seu programa de luta contra Deus.
58. Procurai,
Veneráveis Irmãos, que os fiéis não se deixem enganar! O comunismo é
intrinsecamente perverso e não se pode admitir em campo nenhum a
colaboração com ele, da parte de quem quer que deseje salvar a
civilização cristã. E, se alguns, induzidos em erro, cooperassem para a
vitória do comunismo no seu país, seriam os primeiros a cair como
vítimas do seu erro; e quanto mais se distinguem pela antiguidade e
grandeza da sua civilização cristã as regiões aonde o comunismo consegue
penetrar, tanto mais devastador lá se manifesta o ódio dos “sem-Deus”.
ORAÇÃO E PENITÊNCIA
59. Mas, “se o Senhor não guarda a caridade, em vão vigiam aqueles que a guardam” (Sl
126, 1). Por isso, como último e poderosíssimo remédio vos
recomendamos, Veneráveis Irmãos, que em vossas dioceses promovais e
intensifiqueis, do modo mais eficaz, o espírito de oração unido à
penitência cristã. Quando os Apóstolos perguntaram ao Salvador por que é
que não tinham podido libertar do espírito maligno a um endemoninhado,
respondeu o Senhor: “Demônios desta raça não se expulsam senão com a oração e com o jejum” (Mt
17, 20). Também o mal que hoje atormenta a humanidade não poderá ser
vencido senão com uma santa cruzada universal de oração e penitência: e
recomendamos singularmente às Ordens contemplativas, masculinas e
femininas, que redobrem as suas súplicas e sacrifícios, para 8impetrarem
do céu para a Igreja um válido socorro nas lutas presentes, com a
poderosa intercessão da Virgem Imaculada, a qual, assim como um dia
esmagou a cabeça da antiga serpente, assim também é hoje e sempre segura
defesa e invencível “Auxílio dos Cristãos”.
OS SACERDOTES
60. Para a obra mundial de
salvação que temos vindo traçando, e para a aplicação dos remédios que
ficam brevemente apontados, ministros e obreiros evangélicos designados
pelo divino Rei Jesus Cristo são em primeira linha os sacerdotes. A
eles, por vocação especial, sob a guia dos sagrados Pastores e em união
de filial obediência com o Vigário de Cristo na terra, foi confiada a
missão de conservar aceso no mundo o facho da fé e de infundir nos fiéis
aquela sobrenatural confiança com que a Igreja, em nome de Cristo, tem
combatido e vencido tantas outras batalhas: “Esta é a vitória que vence o mundo, a nossa fé” (1 Jo 5, 4).
61.
De modo particular recordamos aos sacerdotes a exortação de Nosso
Predecessor, Leão XIII, tantas vezes repetida, de ir ao operário;
exortação que Nós fazemos Nossa e completamos: “Ide ao operário, especialmente ao operário pobre, e em geral, ide aos pobres”,
seguindo nisto os ensinamentos de Jesus Cristo e da sua Igreja. Os
pobres, efetivamente são os que se acham mais expostos às ciladas dos
agitadores, que exploram a sua mísera condição, para lhes atear no peito
a inveja contra os ricos e excitá-los a tomarem pela força o que lhes
parece que a fortuna lhes negou injustamente; e, se o Sacerdote não vai
aos operários, aos pobres, para os prevenir ou desenganar dos
preconceitos e das falsas teorias, chegarão a ser fácil presa dos
apóstolos, do comunismo.
62. Não podemos negar que muito se tem feito já neste sentido, especialmente depois das Encíclicas Rerum Novarum e Quadragesimo anno;
e com paterna complacência saudamos o industrioso zelo pastoral de
tantos bispos e sacerdotes, que vão excogitando e ensaiando, embora com a
devida prudência e cautela, novos métodos de apostolado que melhor
correspondam às exigências modernas. Mas tudo isto é ainda muito pouco
para as presentes necessidades. Assim como, quando a pátria está em
perigo, tudo quanto não é estritamente necessário ou não é diretamente
ordenado à urgente necessidade da defesa comum, passa a segunda linha;
assim também em nosso caso, qualquer outra obra, por mais bela e boa que
seja, deve ceder o passo à vital necessidade de salvar as próprias
bases da fé e da civilização cristã. E assim, nas paróquias os
sacerdotes, dando embora materialmente o que é necessário à cura
ordinária dos fiéis, reservem o mais e o melhor das suas forças e da sua
atividade à reconquista das massas trabalhadoras para Cristo e para a
Igreja e a fazer penetrar o espírito cristão nos meios que lhe são mais
refratários. Nas massas populares, encontrarão uma correspondência e uma
abundância de frutos inesperada, que os compensará do duro trabalho do
primeiro arroteamento; como temos visto e vemos em Roma e em muitas
outras metrópoles, onde, à sombra das novas igrejas, que vão surgindo
nos bairros periféricos, se vão organizando fervorosas comunidades
paroquiais e se operam verdadeiros milagres de conversão entre
populações que eram hostis à religião, só porque a não conheciam.
63.
Mas o meio mais eficaz de apostolado entre as multidões dos pobres e
dos humildes é o exemplo do sacerdote, o exemplo de todas as virtudes
sacerdotais quais as descrevemos em Nossa Encíclica Ad Catholici Sacerdotii (20
de dezembro de 1935: A.A.S., vol. XXVIII (1936), págs. 5-53); no
presente caso, porém, de modo especial, é necessário um luminoso exemplo
de vida humilde, pobre, desinteressada, cópia fiel do Divino Mestre que
podia proclamar com divina franqueza: “As raposas têm os seus covis e as aves do céu os seus ninhos; mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça” (Mt
8, 20). Um sacerdote verdadeira e evangelicamente pobre e
desinteressado faz milagres de bem no meio do povo, como um São Vicente
de Paulo, um Cura d’Ars, um Cottolengo, um Dom Bosco e tantos outros; ao
passo que um sacerdote avaro e interesseiro, como recordamos na citada
Encíclica, ainda quando se não precipite, como judas, no abismo da
traição, será pelo menos um oco “bronze a ressoar” e um inútil “címbalo a retinir” (1 Cor
13, 1), e muitas vezes antes obstáculo que instrumento de graça no meio
do povo. E, se o sacerdote secular ou regular, por dever de ofício, tem
que administrar bens temporais, lembre-se que não somente terá
obrigação de observar escrupulosamente tudo quanto prescrevem a caridade
e a justiça, senão que de modo particularmente deve mostrar-se
verdadeiro pai dos pobres.
A AÇÃO CATÓLICA
64. Depois do clero dirigimos o
Nosso paternal convite aos nossos queridíssimos filhos leigos, que
militam nas fileiras da Ação Católica, que nos é tão cara e que, como já
declaramos em outra ocasião (13 de maio de 1936, A.A.S., vol. XXIX
(1937), págs. 139-144), é um “auxílio particularmente providencial”,
para a obra da Igreja nestas circunstâncias tão difíceis. De fato, a
Ação Católica é também apostolado social, enquanto tende a difundir o
Reinado de Jesus Cristo não só nos indivíduos mas também na família e na
sociedade. Por isso deve, antes de tudo, atender a formar com especial
cuidado os seus membros e a prepará-los, para as santas batalhas do
Senhor. A este trabalho formativo, mais que nunca urgente e necessário,
que deve preceder a ação direta e efetiva, servirão certamente os
círculos de estudos, as semanas sociais, os cursos orgânicos de
conferências e todas as demais iniciativas aptas para dar a conhecer a
solução dos problemas sociais em sentido cristão.
65. Soldados
da Ação Católica tão bem preparados e adestrados serão os primeiros e
imediatos apóstolos dos seus companheiros de trabalho e tornar-se-ão os
preciosos auxiliares do Sacerdote, para levarem a luz da verdade e
aliviarem as graves misérias materiais e espirituais, em inumeráveis
zonas refratárias à ação do ministro de Deus, ou por inveterados
preconceitos contra o clero ou por deplorável apatia religiosa.
Cooperar-se-á desse modo, sob a direção de Sacerdotes particularmente
experimentados, naquela assistência religiosa às classes trabalhadoras,
que temos tanto a peito, por ser o meio mais apto para preservar aqueles
Nossos amados filhos da cilada comunista.
66. Além deste
apostolado individual, muitas vezes oculto, mas sobremaneira útil e
eficaz, é função da Ação Católica disseminar amplamente, por meio da
propaganda oral e escrita, os princípios fundamentais que hão de servir
para a construção de uma ordem social cristã, como se depreendem dos
documentos pontifícios.
ORGANIZAÇÕES AUXILIARES
67. Em torno da Ação Católica
cerram fileiras as organizações que Nós saudamos já como auxiliares da
mesma. Com paternal afeto exortamos também estas organizações tão
prestimosas a consagrarem-se à grande missão de que tratamos, que
atualmente supera a todas as outras pela sua vital importância.
ORGANIZAÇÕES DE CLASSE
68. Pensamos também nas
organizações de classe: de operários, de agricultores, de engenheiros,
de médicos, de patrões, de homens de estudo e outras semelhantes; homens
e mulheres, que vivem nas mesmas condições culturais e quase
naturalmente se reuniram em agrupamentos homogêneos. São precisamente
estes grupos e estas organizações que estão destinadas a introduzir na
sociedade aquela ordem, que tínhamos na mente na Nossa Encíclica Quadragesimo anno, e a difundir assim o reconhecimento da realeza de Cristo nos diversos campos da cultura e do trabalho.
69.
E se, pela transformação das condições da vida econômica e social, o
Estado julgou dever intervir até o ponto de assistir e regular
diretamente tais instituições com particulares disposições legislativas,
salvo o respeito devido à liberdade e às iniciativas particulares;
também não pode nessas circunstâncias a Ação Católica manter-se estranha
à realidade, antes deve com prudência prestar a sua contribuição de
pensamento, com o estudo dos novos problemas à luz da doutrina católica,
e da atividade, com a participação leal e voluntária dos seus membros
nas novas formas e instituições, levando-lhes o espírito cristão, que é
sempre princípio de ordem e de mútua e fraterna colaboração.
APELO AOS OPERÁRIOS CATÓLICOS
70. Uma palavra
particularmente paterna quiséramos dirigir aos Nossos queridos operários
católicos, jovens e adultos, os quais, talvez em prêmio da sua
fidelidade por vezes heróica nestes tempos tão difíceis, receberam
missão muito nobre e árdua. Sob a direção dos seus Bispos e Sacerdotes, é
a eles que cumpre reconduzir à Igreja e a Deus aquelas imensas
multidões de irmãos seus de trabalho, os quais, exacerbados por não
haverem sido compreendidos nem tratados com a dignidade a que tinham
direito, se afastaram de Deus. Demonstrem os operários católicos com seu
exemplo, com suas palavras, a esses seus irmãos transviados que a
Igreja é Mãe cheia de ternura para todos os que trabalham e sofrem, e
que jamais faltou nem faltará a seu sagrado dever materno de defender
seus filhos. Se esta missão, que eles devem cumprir nas minas, nas
fábricas, nos estaleiros, onde quer que se trabalha, reclama por vezes
grandes sacrifícios, lembrem-se que o Salvador do mundo deu não só
exemplo do trabalho, senão também o do sacrifício.
NECESSIDADE DE CONCÓRDIA ENTRE OS CATÓLICOS
71. Assim pois, a todos os
Nossos filhos, de todas as classes sociais, de todas as nações, de todos
os grupos religiosos e leigos da Igreja, quiséramos dirigir um novo e
mais urgente apelo à concórdia. Muitas vezes Nosso coração paterno se
tem afligido com as divisões, fúteis muitas vezes em suas causas, mas
sempre trágicas em suas conseqüências, que põem em luta os filhos duma
mesma Mãe, a Igreja. Assim se vê que os agentes da desordem, que não são
tão numerosos, aproveitando-se destas discórdias, lhes exasperam o
azedume, e acabam por lançar os mesmos católicos uns contra os outros.
Depois dos acontecimentos destes últimos meses, deveria parecer
supérfluo o Nosso aviso. Repetimo-lo, porém, uma vez mais para aqueles
que o não compreenderam, ou talvez não o querem compreender. Os que
trabalham por aumentar as distensões entre católicos, tomam sobre si uma
tremenda responsabilidade diante de Deus e da Igreja.
APELO A TODOS OS QUE CRÊEM EM DEUS
72. Mas a esta luta, empenhada
pelo poder das trevas contra própria idéia da Divindade, é-Nos grato
esperar que, além de todos aqueles que se gloriam do nome de Cristo, se
oponham também denodadamente todos quantos crêem em Deus e o adoram, que
são ainda a imensa maioria da humanidade. Renovamos, por isso, o apelo
que já, há cinco anos, lançamos em Nossa Encíclica Caritate Christi, para que também eles leal e cordialmente concorram de sua parte “para afastar da humanidade o grande perigo que a todos ameaça”. Porquanto, - como então dizíamos -, se “a
crença em Deus é o fundamento inabalável de toda a ordem social e de
toda a responsabilidade na terra, todos os que não querem a anarquia e o
terror devem trabalhar energicamente para que os inimigos da religião
não alcancem o fim que tão abertamente proclamam” (Encíclica Caritate Christi, 3 de maio de 1932: A.A.S., vol. XXIX (1932), pág. 184).
DEVERES DO ESTADO CRISTÃO
Ajudar a Igreja
73.
Temos exposto, Veneráveis Irmãos, a função positiva, de ordem, a um
tempo, doutrinal e prática, que a Igreja assume em virtude da mesma
missão, que Jesus Cristo lhe confiou, de edificar a sociedade cristã e,
em nossos tempos, de combater e desbaratar os esforços do comunismo; e
fizemos apelo a todas e a cada uma das classes da sociedade. Para esta
mesma empresa espiritual da Igreja deve também concorrer positivamente o
Estado cristão, ajudando em seu empenho a Igreja com os meios que lhes
são próprios, os quais, embora externos, dizem também respeito, em
primeiro lugar, ao bem das almas.
74. Por isso os Estados porão
todo o cuidado em impedir que a propaganda atéia, que destrói todos os
fundamentos da ordem, faça estragos em seus territórios, porque não
poderá haver autoridade na terra, se não se reconhece a autoridade da
Majestade divina, nem será firme o juramento, que não se faça em nome do
Deus vivo. Repetimos o que tantas vezes e com tanta insistência temos
dito, nomeadamente na Nossa Encíclica Caritate Christi: “Como
pode sustentar-se um contrato qualquer, e que valor pode ter um tratado,
onde falte toda a garantia de consciência? E como pode falar-se de
garantia de consciência, onde falte toda a fé em Deus, todo o temor de
Deus? Destruída esta base, desmorona-se com ela toda a lei moral, e não
haverá já remédio nenhum que possa impedir a gradual, mas inevitável
ruína dos povos, da família, do Estado, da própria civilização humana” (Encíclica Caritate Christi, 3 de maio de 1932: A.A.S., vol. XXIV (1932), pág. 190).
Providências do bem comum
75.
Além disso, deve o Estado pôr todo o cuidado em criar aquelas condições
materiais de vida, sem as quais não pode subsistir uma sociedade
ordenada, e em procurar trabalho especialmente aos pais de família e à
juventude. Para esse fim induzam-se as classes ricas a que, pela urgente
necessidade do bem comum, tomem sobre si aqueles encargos, sem os quais
a sociedade humana não pode salvar-se, nem elas próprias poderiam
encontrar salvação. Mas as providências, que o Estado toma para esse
fim, devem ser tais que atinjam efetivamente os que de fato têm nas mãos
os maiores capitais e continuamente os vão aumentando com grave
prejuízo dos outros.
Prudente e sóbria administração
76.
O próprio Estado, lembrando-se de suas responsabilidades diante de Deus
e da sociedade, sirva de exemplo a todos os demais com uma prudente e
sóbria administração. Hoje mais que nunca a gravíssima crise mundial
exige que aqueles que dispõem de fundos enormes, fruto do trabalho e do
suor de milhões de cidadãos, tenham sempre diante dos olhos unicamente o
bem comum e procurem promovê-lo o mais possível. Os funcionários do
Estado e todos os empregados cumpram também, por dever de consciência os
seus deveres com fidelidade e desinteresse, seguindo os luminosos
exemplos antigos e recentes de homens insignes, que num trabalho sem
descanso sacrificaram toda a sua vida pelo bem da pátria. E no comércio
dos povos entre si, procure-se solicitamente remover aqueles obstáculos
artificiais da vida econômica, que brotam do sentimento da desconfiança e
do ódio, recordando que todos os povos da terra formam uma única
família de Deus.
Deixar liberdade à Igreja
77.
Mas, ao mesmo tempo, deve o Estado deixar à Igreja plena liberdade de
cumprir a sua missão divina e espiritual, para contribuir assim
poderosamente para salvar os povos da terrível tormenta da hora
presente. Por toda a parte se faz hoje um angustioso apelo às forças
morais e espirituais; e com toda a razão, porque o mal que se deve
combater é antes de tudo, considerado em sua primeira origem, um mal de
natureza espiritual, e desta fonte é que brotam, por uma lógica
diabólica, todas as monstruosidades do comunismo. Ora, entre as forças
morais e religiosas, sobressai incontestavelmente a Igreja Católica; e
por isso o mesmo bem da humanidade exige que não se ponham obstáculos à
sua atividade.
78. Proceder de outro modo e pretender ao mesmo
tempo alcançar o fim com meios puramente econômicos e políticos, é ficar
à mercê de um erro perigoso. E quando se exclui a religião da escola,
da educação, da vida pública, e se expõem ao ludíbrio os representantes
do Cristianismo e seus sagrados ritos, não se promove porventura aquele
materialismo, donde germina o comunismo? Nem a força, ainda a mais bem
organizada, nem os ideais terrenos, por mais grandiosos e nobres que
sejam, podem dominar um movimento, que tem suas raízes precisamente na
demasiada estima dos bens da terra.
79. Confiamos que aqueles
que dirigem os destinos das nações, por pouco que sintam o perigo
extremo que ameaça hoje os povos, compreenderão cada vez melhor o
supremo dever de não impedir à Igreja o cumprimento da sua missão; tanto
mais que, ao cumpri-la, enquanto procura a felicidade eterna do homem
trabalha também inseparavelmente pela verdadeira felicidade temporal.
APELO PATERNO AOS TRANSVIADOS
80. Mas não podemos pôr termo a
esta Carta Encíclica, sem dirigir uma palavra àqueles mesmos filhos
Nossos que estão já contagiados ou tocados do mal comunista.
Exortamo-los vivamente a que ouçam a voz do Pai que os ama; e rogamos ao
Senhor que os ilumine, para que deixem o caminho que os despenha a
todos numa imensa e catastrófica ruína, e reconheçam também eles que o
único Salvador é Jesus Cristo Senhor Nosso: “porque não há sob o céu nenhum outro nome dado aos homens, pelo qual possamos esperar ser salvos” (At 4, 12).
SÃO JOSÉ, MODELO E PATRONO
81. E, para apressar a “Paz de Cristo no Reino de Cristo” (Encíclica Ubi Arcano,
23 de dezembro de 1922: A.A.S., vol. XIV (1922), pág. 619), por todos
tão desejada, pomos a grande ação da Igreja Católica contra o comunismo
ateu mundial sob a égide do poderoso Protetor da Igreja, São José. Ele
pertence à classe operária e experimentou o peso da pobreza, em si e na
Sagrada Família, de que era chefe vigilante e afetuoso; a ele foi
confiado o Deus Menino, quando Herodes mandou contra ele os seus
sicários. Com uma vida de fidelíssimo cumprimento do dever cotidiano,
deixou um exemplo de vida a todos os que têm de ganhar o pão com o
trabalho de suas mãos e mereceu ser chamado o Justo, exemplo vivo
daquela justiça cristã, que deve reinar na vida social.
82. Com os olhos no alto, a nossa fé vê os novos céus e a nova terra; de que fala o Nosso primeiro Antecessor, São Pedro (2 Pdr 3, 13; cf. Is 66, 22; Apc
21, 1). Enquanto as promessas dos falsos profetas da terra se
desvanecem em sangue e lágrimas, brilha com celeste beleza a grande
profecia apocalíptica do Redentor do mundo: “Eis que Eu renovo todas as coisas” (Apc 21, 5).
Não
Nos resta, Veneráveis Irmãos, senão elevar as mãos paternas e fazer
descer sobre Vós, sobre o vosso Clero e povo, sobre toda a grande
Família Católica, a Bênção Apostólica.
Dada em Roma, junto de
São Pedro, na festa de São José, Padroeiro da Igreja Universal, no dia
19 de março de 1937, ano XVI do Nosso Pontificado.
PIO XI PP.