Três livros de S. Ambrósio , bispo de Milão,
sobre a virgindade , á sua irmã Marcelina
LIVRO PRIMEIRO
Capítulo primeiro
Ambrósio compreende que deve dar contas a Deus de todas as suas palavras e talentos, e aplica-se a escrever. Depois de examinar diversos exemplos da misericórdia divina , excita-se á confiança , mas logo confessa incapacidade para o trabalho, desejando ser tratado como a figueira do Evangelho . Todavia, para fechar a boca aos adversários, declara não lhe faltarão as palavras, porque fala de Cristo.
1.Se, conforme a sentença evangélica, havemos de prestar contas a Deus de toda palavra ociosa (Mt 12, 36) ; se o servo, qual usurário apreensivo ou avarento, oculta na terra os talentos da graça espiritual a ele confiados, os quais deveriam antes ser depositados nos bancos, para que multiplicassem em juros - incorrerá em grande desagrado de seu Senhor, quando este houver tornando; nós, com razão, embora dotado de medíocre talento, devemos temer porque, pela necessidade, somos forçados a confiar as nossas almas a juros, os talentos divinos, porque assim se não nos peçam contas de nossas palavras, mormente porque o Senhor exige o esforço e não o êxito. Por isso acabei resolvendo que escreveria. Estamos mais expostos à confusão no falar do que no escrever; os escritos não sofrem acanhamento.
2. Descrevendo a minha incapacidade, mas estimulado pelos exemplos da misericórdia divina, ouso elaborar o meu discurso, pois, quando aprouve a Deus, a jumenta também falou (Num. 22, 28).Se um anjo vier em meu socorro, embora sobrecarregado dos fardos deste século (destes tempos) , abrirei os lábios, há tanto tempo mudos, porquanto pode remover o impedimento da ignorância Aquele que, na jumenta, destruiu os obstáculos da natureza.Na arca do Antigo Testamento floriu a vara do sacerdote (Num. 17, 8) ; Deus fará germinar facilmente, na S. Igreja, flores do nosso tronco nodoso. Quem admira que Deus fale pelos homens, Ele que falou na
sarça, oxalá ilumine Ela nas minhas dificuldades.Haverá os que se admirem de luzir algum clarão em nosso sarçal, a outros não atingirão nossos espinhos; haverá os que, ouvindo-nos a voz, descalçarão as sandálias por que os obstáculos materiais não travem o progresso da alma.
3. Estes são, porém, méritos de varões santos. Quem me dera lançasse Jesus seus olhares sobre mim deitado sob a figueira estéril! Após três anos também nossa figueira produzirá frutos ( Lc 13, 7).Donde, porém, aos pecadores esperança tanta? Praza aos céus aquele vinhateiro do evangelho , incumbido de arrancar a figueira, a poupe ainda este ano resolvido a cavar-lhe ao derredor do pó e o pobre do monturo.Bem-aventurados aqueles que prendem seus cavalos sob a videira e a oliveira ( Gn 49, II) consagrando o curso de seus trabalhos á luz e á alegria. Pesa sobre mim a sombra da figueira, isto é, o desejo sedutor das delícias mundanas, árvore enfezada, frágil para trabalho, débil para uso, estéril em frutos.
4. Talvez alguém se admire de que ouse escrever quem não pode falar.
Relembrando, todavia, a doutrina evangélica, (as escrituras) e os feitos dos
sacerdotes encontramos uma prova no santo profeta Zacarias: o que não pode
explicar verbalmente , escreveu.Se o nome de João restituiu a voz ao pai, eu,
mudo embora, não devo desesperar de reaver a fala discorrendo sobre Cristo: (Lc 1, 63, 64): cuja geração, conforme o dito profético, quem poderá descrever? (Is LIII, 8).Por isso, como servo, louvarei a família do Senhor, visto que o Senhor imaculado consagrou para si próprio, num corpo sujeito
ás máculas da fragilidade humana, um escol virginal.
LIVRO PRIMEIRO
Capítulo segundo
Santa Inês
Ambrósio narra, no início de seu livro, o natalício de uma virgem, isto é da bem-aventurada Inês. Celebra-lhe o nome, a pureza, o martírio, mas principalmente a idade, porquanto aos 12 anos venceu varonilmente os tormentos, as promessas e, finalmente, a própria morte.
5. E feliz coincidência encetarmos nosso livro dedicado ás virgens no dia natalício duma virgem. E o natal duma virgem, imitemos a pureza. E o natal duma mártir, imolemos vítimas. E o natal de Inês, admirem-se os varões, não desanimem os jovens, pasmem as esposas, imitem-na as virgens.¹
Mas, como louvaremos aquela cujo nome encerra um elogio? o devotamento
excedeu-lhe a idade, a virtude sobrepujou-lhe a natureza de tal modo que
me quer parecer recebesse não um nome humano, mas anúncio do martírio futuro.
6.Tenho, porém, donde tirar explicação.O nome da virgem designa pudor. Chamá-la-ei mártir, proclamá-la-ei virgem. Suficientemente expressivo é o louvor que se não procura, mas que se possui.
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1) O nome Inês vem do grego Hagnê, pura.
Desmaiem-se os talentos cale-se a eloquência que uma só palavra é o elogio
bastante. Cantem-lhe louvores os anciãos, os jovens e as crianças. Só é
condignamente louvável quem por todos pode ser louvado. Quantos forem os
homens tantos serão os panegiristas da mártir.
7. Refere-se que Inês foi martirizada aos 12 anos. Abominável crueldade que não poupou idade tão tenra e grande valor o da fé atestada por tal idade . Havia onde . ferir corpo tão tenro? Entretanto, aquela que não tinha onde receber ferida da espada soube por onde vencer o gládio. Nesta
idade as crianças não suportam o semblante carregado dos pais, e costumam
chorar com as picadas de agulha como se fora incisão. Impávida entre as mãos cruentas dos algozes, imóvel no meio do ranger das pesadas cadeias, entrega todo seu corpo á espada de furioso soldado ; ignora o que seja morrer e já está pronta para fazê-lo.Arrastam-na, constrangida, aos altares,
mas, elevando os braços para Cristo, no meio das chamas, ostenta dentro das
labaredas sacrílegas o troféu do Senhor vitorioso. Oferece pescoço e mãos ás algemas; não as havia, porém, que ligassem membros tão pequenos.
8.Nova espécie de martírio? Ainda não amadurecida para o suplício e já era para a vitória: luta desigual, mas triunfo fácil, ensina fortaleza aquela a quem idade não dava direitos. A cabeça adornada da beleza de Cristo e não de cabelos trabalhados, coroada não de flores mas de virtudes, a virgem caminha animosa para o lugar do suplício , tão prestes para as núpcias não correria a esposa. Todos choram, exceto a virgem. Admira-se que sacrifique, tão
pródiga, uma vida ainda não vivida, como se já tivesse chegado ao termo .
Maravilham-se dê testemunho da divindade quem, pela idade, não era senhora de si mesma.Finalmente fez com que se atribuísse a
Deus o que não podia ser realizado por homens. Aquilo que ultrapassa a natureza compete ao autor da natureza.
9. Quanto pavor incutiu o algoz para intimidá-la, quanta promessa para
dissuadi-la. Quantos anelaram desposá-la? Ela, porém, replica: "é ofender o Esposo fazê-lo esperar pela amada que lhe agrada. Receber-me-á Aquele que, primeiro me escolheu. Por que tardas, algoz? Pereça o corpo amado de olhos que aborreço". A virgem firmou-se sobre os pés, orou e, em
seguida, dobrou a cabeça sobre o cepo. O algoz, porém, começa a hesitar como se ele próprio tivesse sido ferido; treme-lhe a mão, empalidecem-lhe as faces á vista do perigo alheio; a virgem, entretanto, nada teme.
Numa hóstia dois martírios: o da castidade e o da religião. Permaneceu virgem e coroou-se mártir.
Viva Cristo Rei e Maria Rainha.
Rezem todos os dia Santo Rosário.