por Dom Tomás de Aquino, OSB.
†
PAX
No Evangelho
de hoje, Nosso Senhor diz que quando uma alma se entrega ao pecado mortal, o
demônio aí habita como em sua casa. Assim era com quase todas as almas no tempo
do dilúvio, assim era quase que regra geral das almas e das sociedades antes da
vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo. Mas, diz Nosso Senhor, quando um mais forte
que o demônio o vence e lhe retira suas armas nas quais ele confiava, o demônio
é obrigado a partir desta alma. Ora, quem é mais forte que o demônio senão que
Nosso Senhor Jesus Cristo e Sua Santíssima Mãe? Nosso Senhor veio, e morrendo
na cruz, despojou o demônio de suas armas e o expulsa das almas pelo santo
Batismo e fortifica as almas com a Confirmação, as alimenta com a Santa
Eucaristia, lhes deu a Confissão como um segundo meio de salvação e lhes deu a
Extrema Unção para apagar os restos de pecado antes da última viagem que as
conduz à eternidade.
Ele nos deu
também dois outros sacramentos, a Ordem e o Matrimônio. A Ordem ou Sacerdócio
para administrar os sacramentos e o Matrimônio para santificar a propagação do
gênero humano. Ora, o mundo foi santificado por estes sacramentos, por esta
instituição que é a Santa Igreja Católica, distribuidora autorizada destes
sacramentos. Mas, diz Nosso Senhor no Evangelho de hoje, o demônio uma vez
expulso, anda por lugares áridos à procura de repouso. E não encontrando, diz:
“Voltarei para a casa donde saí” e a vendo varrida e adornada vai e toma sete
espíritos piores do que ele, e entra nesta alma, e o último estado deste homem
se torna pior do que o primeiro, ou seja, do que ele era antes de receber a
graça divina; do que ele era antes de Nosso Senhor visitá-lo e curá-lo. Apliquemos
este ensinamento ao que estamos vendo hoje.
O mundo,
sobretudo o Ocidente, já foi profundamente católico. Apesar
de sempre haver o joio misturado com o trigo, os países como Itália, França,
Espanha, Inglaterra, Portugal, Alemanha, Polônia, Áustria e tantos outros,
deram inúmeros santos à Igreja. A cidade de Roma é a cidade dos mártires; mártires
que eram expostos às feras no Coliseu, queimados vivos, degolados, crucificados
ou mortos de outras maneiras. Roma, desde que São Pedro aí residiu, tornou-se a
sede, a capital da Igreja militante. É de Roma, é da cátedra de São Pedro que
os ensinamentos de Nosso Senhor são distribuídos infalivelmente ao mundo
católico. Mas, em punição pelos pecados dos homens, Deus permitiu que o demônio
voltasse a forçar a porta e acabasse entrando nestes países, outrora católicos.
Ele
entrou matando espiritualmente ou fisicamente seus governantes, ou seja, os
fazendo cair na heresia, como na Inglaterra, ou os fazendo perecer na
guilhotina, como na França. Ferida a cabeça, os membros se dispersam. A vida
católica destes países ficou abalada sem o apoio natural da autoridade. Muitas
almas continuaram a amar a Deus sobre todas as coisas, mas as leis e a vida
pública destes países começaram a se voltar contra Nosso Senhor Jesus Cristo.
Foi
o que vimos aqui no Brasil no tempo de Dom Vital, preso e provavelmente envenenado.
Foi o que vimos na França, com duas expulsões de religiosos e a espoliação dos
bens da Igreja (ou seja, o Estado francês roubou tudo o que pertencia à Igreja).
Mas o demônio não ficou só nisso. Por uma misteriosa permissão, Deus, na Sua
Justiça, permitiu que o demônio entrasse no santuário da Igreja. Que se passou?
Os
homens da Igreja, dominados por doutrinas perversas, introduziram o liberalismo
e o modernismo dentro da Igreja, sobretudo no Concílio Vaticano II. A cabeça da
Igreja, ou seja, o Papa, foi ferida e as ovelhas se dispersaram. Os próprios
bispos ficaram sem saber como agir, pois como agir sem o chefe natural da
Igreja, que é o Papa?
Mas
entre os bispos houve dois homens, dois heróis da fé católica, um francês e o
outro, um brasileiro, Dom Lefebvre e Dom Antônio de Castro Mayer, que,
meditando na lei de Deus, que sendo fiéis ao que haviam aprendido em Roma
mesmo; homens que pela sua humildade e sua devoção à Santíssima Virgem,
mereceram encontrar forças, ou melhor, receberem da misericórdia divina a graça
de se oporem ao demônio e à autodestruição da Igreja.
Mas
todos nós devemos morrer, e Dom Lefebvre pensou que não deveria partir desta
vida sem deixar a seus filhos espirituais, sem deixar a seus seminaristas, sem
deixar à Igreja, os meios de continuar a resistir a esta invasão diabólica que
quer tornar o mundo (e, se possível fosse, a Santa Igreja também) pior do que
ele, o mundo, era antes da vinda de Nosso Senhor, e assim facilitar o reino do
Anticristo, que não terá outro objetivo senão concluir a obra iniciada pelos
modernistas. Que fez, então, Dom Lefebvre?
Ele
primeiro procurou por todos os meios um acordo com Roma, procurando um meio de
salvaguardar a Tradição. Na verdade, ele procurou saber até onde ia a crise em
Roma. Ele procurava saber se Roma queria a Tradição ou se era inútil esperar
encontrar nas autoridades romanas a vontade de proteger a fé católica e de
fazer reflorescer a Santa Igreja pela graça dos sacramentos. Ele procurou algum
apoio real, alguma determinação verdadeira de defender e proteger a fé católica
contra o modernismo e o liberalismo. Dom Lefebvre foi até o ponto de assinar um
pré-acordo, mas, no dia seguinte, ele retirou a sua assinatura. “Eu fui longe
demais”, dizia ele. Vendo clara e dolorosamente que não havia solução, ele
sagrou, em 30 de junho de 1988, quatro bispos para a Santa Igreja. Quase um ano
antes desta cerimônia, em agosto de 1987, ele escrevera aos futuros bispos uma
carta da qual citaremos algumas passagens. Estas passagens nos demonstram a
gravidade da situação que encontrara Dom Lefebvre ao pesar tudo o que estava
acontecendo e, sobretudo, pesando o apego de Roma aos princípios
revolucionários do liberalismo e do modernismo. Ele escrevia:
“A
cátedra de Pedro e os postos de autoridade de Roma, estando ocupados por
anticristos, a destruição do Reino de Nosso Senhor avança rapidamente no
interior mesmo de Seu Corpo místico aqui na terra, especialmente pela corrupção
da Santa Missa, esplêndida expressão do triunfo de Nosso Senhor na Cruz: ‘Regnavit a ligno Dei’ e fonte de
crescimento de seu reinado sobre as almas e as sociedades”.
Vemos
nessas palavras a ilustração do que Nosso Senhor nos diz no Evangelho de hoje.
O demônio procura destruir o reino de Nosso Senhor na terra e para isso ele
ataca a missa, que, como diz Dom Lefebvre, é a “fonte de crescimento”, ou seja,
da propagação deste reino de Nosso Senhor sobre as almas e sobre as sociedades.
Mas continuemos:
“[...]
Eu me vejo forçado pela Providência Divina, escreve Dom Lefebvre, a transmitir
a graça do episcopado católico que eu recebi a fim de que a Igreja e o
sacerdócio católico continuem a subsistir para a glória de Deus e a salvação
das almas”. E ele nos adverte: “Eis porque, convencido de não cumprir senão a
vontade de Nosso Senhor, eu venho através desta carta vos pedir de aceitar a
graça do episcopado católico como eu já conferi a outros padres em outras
circunstâncias”. E termina dizendo: “Bem, caros amigos, sede minha consolação
em Cristo Jesus, permanecei fortes na fé, fiéis ao verdadeiro sacrifício da
missa, ao verdadeiro e santo sacerdócio de Nosso Senhor, para o triunfo e a
glória de Jesus no céu e na terra, para a salvação de minha alma.
Nos
corações de Jesus e de Maria eu vos abraço e vos abençoo.
Vosso
pai no Cristo Jesus
+
Marcel Lefebvre
Eis aí a razão das sagrações de 1988. Ora, a crise hoje é a mesma que em 1988. Roma mudou, talvez, mas mudou para pior. Após as sagrações de 1988, houve outra pouco depois, a de Dom Lícinio, realizada em São Fidélis, em 1991. Se não me engano, foi Dom Tissier de Malerais o bispo consagrante, assistido por Dom Williamson e Dom Galarreta. E depois, que se passou?
Por
que agora se fala novamente em sagração? Por que no ano passado foi sagrado Dom
Faure aqui no mosteiro? Qual é a razão destas sagrações sem a participação dos
outros bispos sagrados por Dom Lefebvre? A razão da sagração de Dom Faure e da
próxima sagração (se Deus quiser, será realizada no próximo dia 19 de março, à
qual todos os nossos fiéis estão convidados)... a razão destas sagrações não é,
como disse Dom Galarreta: “Para eles (ou seja, para a resistência), é um
princípio. É uma questão doutrinal. Vós não podeis admitir a possibilidade de
um acordo com Roma sem ser liberal”.
O
raciocínio de Dom Galarreta é interessante. Que seja uma questão doutrinal, nós
estamos de acordo. Sim, é uma questão doutrinal, mas não se trata só de uma
questão doutrinal. É uma questão também prudencial. Santo Tomás, falando da
docilidade, nos diz que se deve escutar os anciãos em suas sentenças não menos
que nas suas demonstrações por causa da experiência deles (II Reis). E a
Sagrada Escritura nos diz: “Compareça à assembleia dos anciãos e aceite de
coração a sabedoria deles (Eclo. VII,35)”. E que disseram os anciãos, que
disseram Dom Lefebvre e Dom Antônio de Castro Mayer? Tomemos Dom Lefebvre, que
pode analisar de mais perto esta crise em Roma mesmo. Ele disse que se ele
fosse chamado novamente à mesa das negociações seria ele que poria as
condições: “ou os senhores aceitam as encíclicas de seus predecessores que
condenam os erros modernos, ou nada feito”. Dom Lefebvre, em outras palavras,
dizia que era necessário a volta de Roma à Tradição. Ele escrevia a João Paulo
II em 2 de junho de 1988:
“Nós
continuamos a rezar para que a Roma moderna, infestada de modernismo, volte a
ser a Roma católica e reencontre sua tradição bimilenar. Então, o problema da
reconciliação não terá mais razão de ser, e a Igreja reencontrará uma nova
juventude”. E ainda: “O objetivo desta reconciliação (entre a Fraternidade e
Roma) não é de modo algum o mesmo para a Santa Sé e para nós. Assim sendo, nós
preferimos esperar tempos mais propícios ao retorno de Roma à Tradição”.
Pode-se discutir e deve-se discutir estes assuntos.
Isto
não é um tabu para nós. Nós devemos nos aplicar a fundo nestas questões, pois
elas são vitais para nós. Se nós não seguimos Dom Fellay e seus assistentes e
nem aprovamos o abandono do princípio prudencial do Capítulo Geral da Fraternidade
de 2016, que dizia, ‘nada de acordo prático sem acordo doutrinal”, não é por
mero capricho nem por sermos sedevacantistas, nem por qualquer outra razão
diferente das razões dadas por Dom Lefebvre. Se nós nos recusamos a seguir Dom
Fellay é porque nós cremos que os três bispos da Fraternidade, Dom Williamson,
Dom Tissier e Dom Galarreta, tinham razão na famosa carta de 7 de abril de
2012:
“Monsenhor,
senhores padres, prestem atenção, os senhores estão conduzindo a Fraternidade a
um ponto do qual não poderá fazer marcha-ré, a uma profunda divisão sem retorno
e se os senhores chegarem a um tal acordo, os senhores estragariam a
Fraternidade, as poderosas influências destruidoras que ela não suportará. Se
até o presente, os bispos da Fraternidade a protegeram é precisamente porque
Dom Lefebvre recusou um acordo prático”. “Uma vez que a situação não mudou
substancialmente, uma vez que a condição pedida pelo Capítulo de 2016 não se
realizou de modo algum (ou seja, a mudança doutrinal de Roma que permitiria um
acordo prático) escutai ainda vosso fundador. Ele teve razão há 25 anos. Ele tem
razão ainda hoje. Em seu nome, nós nos conjuramos: não engajai a Fraternidade
num acordo puramente prático.”
E
qual foi a resposta de Dom Fellay? Foi que os três bispos faziam prova de falta
de espírito sobrenatural e realismo. Dom Fellay não ficou só nisso. A expulsão
de Dom Williamson, principal inspirador e redator da carta dos três bispos, a
expulsão de vários outros padres, o adiamento das ordenações dos dominicanos e
dos capuchinhos e a ameaça de adiamento das ordenações dos beneditinos de
Bellaigue, assim como várias declarações de Dom Fellay e do Padre Pfluger,
mostram claramente o desejo de um acordo prático sem acordo doutrinal, ou
melhor, sem o retorno da Tradição à Roma.
Nem
por isso nós queremos mal à Fraternidade, muito pelo contrário. Nós desejamos
que ela faça marcha-ré. Ela parece tê-lo feito, de certo modo, mas a situação
continua extremamente delicada. Um reconhecimento unilateral da Fraternidade
seria algo bom? Os reconhecimentos unilaterais que nós vimos se realizar
durante outras crises se mostraram não serem, na prática, unilaterais. Mesmo
querendo não ceder nada aos modernistas, a experiência mostrou que tanto Dom
Gérard como Dom Rifan, para só falar dos casos que conheço melhor, cederam e
muito, apesar de Dom Gérard dizer: “Roma dá tudo e não pede nada. Como posso
recusar?”
É
para evitar estes perigos, é para seguir mais de perto os conselhos de Dom
Lefebvre, aos quais recordaremos ainda umas outras ocasiões para explicar as
razões desta nova sagração, que nós dizemos não à política dos acordos. Não
somos nem queremos ser sedevacantistas. Queremos simplesmente continuar a
Tradição como Dom Lefebvre e Dom Antônio de Castro Mayer fizeram. Nada mais do
que isso.
Sabemos
que o demônio ronda em torno de cada um de nós procurando a quem devorar.
Sabemos que ele quer forçar a entrada de tudo o que ainda está de pé, tanto
individualmente como coletivamente, tanto as almas como os mosteiros e as
congregações ainda tradicionais. Mas desejamos que isto não aconteça com
ninguém. Rezamos para que a obra de Dom Lefebvre resista, volte ao seu primeiro
fervor e venha em nosso auxílio, pois precisamos dos tesouros de ciência e de
piedade que se encontram ainda na Fraternidade.
Não
nos agrada vê-la longe de nós, não nos agrada estarmos tão sós, mas não podemos
não resistir a essa tendência, a um acordo cujos efeitos já se fazem sentir a
tantos anos e que pesam sobre a Fraternidade, desorientando os fiéis, proibindo
a venda de bons livros, como os livros sobre o escandaloso Sínodo da Família,
livro redigido com a colaboração dos capuchinhos de Morgon sem, que eu saiba,
nenhuma alusão a Dom Fellay. Mesmo assim, o livro foi proibido de ser vendido
nos priorados da Fraternidade. Por quê? Seria, por acaso, por que o livro fala
mal do Papa Francisco? Eis o que nos importa na Fraternidade.
Ora,
não podendo apoiar Dom Fellay, que se mostrou bem adverso a Dom Williamson e
também a Dom Faure, é normal que a Resistência procure os mesmos meios que Dom
Lefebvre procurou, dizendo aos seus escolhidos: “Eu vos confiarei esta graça do
episcopado católico, confiante de que, tão tardar, a Sé de Pedro será ocupada
por um sucessor de Pedro perfeitamente católico, nas mãos dos quais os senhores
poderão dar a graça de vosso episcopado para que ele a confirme”.
Eis
aí o nosso programa. Eis aí resumidamente as nossas razões. Rezem por nós. A
falha dos que estão elevados em dignidade são mais visíveis. Razão a mais para
rezar pelos bispos. Razão também, ou melhor, ocasião de maiores críticas e
maiores ataques, como se vê contra Dom Williamson e Dom Faure. Que vossas
orações nos obtenham de ser forte sem dureza, admoestando a tempo e a
contratempo, e guardando a sã doutrina, e tratando a todos com caridade e na
castidade. Que as palavras de São Paulo a São Timóteo nos estejam sempre presentes:
“Vela por ti e pelo teu ensinamento: persevere nisto porque, assim fazendo, te
salvarás a ti mesmo e àqueles que te ouvem”.
Assim seja, com o auxílio de Maria Santíssima.
Viva Cristo Rei e Maria Rainha.
Rezem todos os dia Santo Rosário.